"Nós vamos aí
comer vocês"
*Por » Mônica
Sifuentes
A frase que intitula este texto foi certamente a mais comentada na imprensa e nas redes sociais durante a semana que passou.
Não se tratava de anúncio de um novo programa de culinária nem tampouco era o título de um filme pornográfico ou de um movimento de apologia ao canibalismo. Nada disso.
Ela viralizou nas redes graças a um vídeo em que um senhor bem-vestido, sorridente e bem-humorado se apresentava, abraçado ao conhecido cantor Leonardo, enviando um recado às suas amigas do interior de Santa Catarina.
O recado em questão, dirigido pública e alegremente às destinatárias, já era suficiente para causar certo desconforto. Mas o autor, talvez empolgado com a presença do artista sertanejo, resolveu apimentá-lo um pouco mais, adicionando outro tempero: esclareceu a forma como as amigas seriam “comidas”. Tudo talvez não passasse de mais uma, entre muitas atitudes recorrentes e diárias de desrespeito ao sexo feminino, não fosse o senhor em questão autoridade pública — desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que mandava o recado para as “amigas” juízas, citadas por ele nominalmente.
A divulgação do vídeo provocou reações imediatas de várias entidades, que manifestaram repúdio às declarações do desembargador pelo tom sexista e desrespeitoso, inadmissível em um país onde uma mulher é estuprada a cada 10 minutos. A mensagem, além de expor as magistradas a que se destinavam, atingia todas as mulheres, reforçando cultura machista e misógina a que Sua Excelência não poderia de forma nenhuma exaltar, mas, ao contrário, lhe cumpria reprimir e condenar. Pouco tempo depois o mesmo senhor, agora com aspecto circunspecto, postou outro vídeo reconhecendo o erro, pedindo desculpas e reafirmando o seu arrependimento. Mas o mal era irreparável e já estava feito. Como diziam os antigos, há três coisas na vida que não voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida.
Todo o enredo dessa novela grotesca expõe uma compreensão, de certo modo consentida, de que as ofensas à dignidade e intimidade das mulheres podem ser minimizadas se ditas com um sorriso no rosto, em tom despretensioso, na velha repetição da fórmula de que “tapinha de amor não dói”. Não há dúvidas de que frases desrespeitosas como essas, travestidas de brincadeira, escondem uma cultura permissiva e tolerada de violência moral contra as mulheres.
No entanto, o caso, em si, traz uma preocupação adicional: a frase não partiu de uma pessoa sem cultura ou sem conhecimento do teor da sua fala. Ela veio da boca de um magistrado, alguém que tem, por dever legal, “manter conduta irrepreensível na vida pública e particular” e a quem é proibido externar comportamento “incompatível com a dignidade, a honra e o decoro das suas funções”(LC 35/1979). Ou seja, partiu de alguém que tinha o dever legal de dar o exemplo.
Não é à toa que o Código de Ética da Magistratura Nacional, aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça, afirma logo no seu preâmbulo ter sido instituído para que os juízes possam incrementar a confiança da sociedade em sua autoridade moral, como um mecanismo para fortalecer a legitimidade do Poder Judiciário. Segundo esse código, a integridade da conduta do magistrado, também exigida fora do âmbito estrito da atividade jurisdicional, tem importante função: ela contribui para aumentar a confiança dos cidadãos no Judiciário. A legitimidade dos juízes não vem das urnas, mas, em primeiro lugar, da sua credibilidade.
É certo que todos os que exercem um cargo público devem manter a dignidade e o decoro no exercício da função. Do juiz, no entanto, se exige mais, pois dele se espera bom senso, equilíbrio e serenidade para o trato diário na resolução dos conflitos e agruras humanas. A crise das instituições, que está patente nos dias atuais, põe em risco, talvez como em nenhuma outra época, a nossa democracia. Cenas e frases como a que se viu no vídeo mencionado contribuem para macular a imagem dos juízes, das juízas, de todas as mulheres. Uma, em especial, foi mais afrontada: Themis, a deusa da Justiça. (Vídeo)
(*) Mônica Sifuentes - Desembargadora Federal – Ilustração
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JUSTIÇA