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Durante quatro dias, o povo indígena fez bater o coração da Terra


Durante quatro dias, o povo indígena fez bater o coração da Terra

Crônicas urbanas, crônicas de afeto e do viver (Conceição Freitas)
Tuxaua é uma palavra que ouço desde menina. Minha mãe diz que o avô dela era tuxaua em uma aldeia de Parintins. Nunca pude conferir se era isso mesmo porque a família dela, embora seja nitidamente descendente de índio, ignora/despreza/se recusa a buscar informações sobre seus ancestrais. Moram em um bairro popular de Manaus, vivem modestamente e sempre me olham com estranheza quando tento saber de onde veio a minha avó materna. (Tuxaua tem sentidos diferentes para cada povo indígena, mas em geral significa cacique, líder).

Dona Tomásia morreu com pouco mais de 30 anos, possivelmente de tuberculose. Não há fotos dela. Talvez nunca tenha sido fotografada na pobreza em que vivia. (Meu avô, negro, era furador de chão para as tubulações de água e esgoto de Manaus). Minha mãe diz que a mãe dela tinha os dois dentes da frente serrados em forma de triângulo, mas nem isso consegui conferir.

Na quinta-feira passada (25/04/2019), às cegas, cheguei ao ATL, como os índios chamam o Acampamento Terra Livre, montado pela 15ª vez na Esplanada dos Ministérios. Desta vez, eles foram obrigados a deixar o canteiro central para ocuparem o Setor Cultural Norte, aquele vazio vermelho que fica ao lado do Teatro Nacional.

Havia muito com o que se surpreender: os adereços, o artesanato, as pinturas nos corpos, as miçangas intensamente coloridas, os cabelos negros e longos das índias, os cocares dos caciques, a dança e o canto dos índios, as diferentes etnias indígenas, mas nada disso me tocou mais do que o som que saía da Terra quando eles batiam no chão o pé descalço (ou de chinelo de dedo). Uma ressonância funda e cálida, como um tambor que faz a marcação no samba, como a batida de um coração.
Índio nunca deixa de ser índio como passarinho nunca deixa de ser passarinho e minhoca nunca deixa de ser minhoca. Nem 519 anos de atrocidades lhes tiraram a alma. A alma parece ocupar o lado de fora do corpo de um índio. Mesmo os mais adaptados à cidade, mesmo eles têm uma soberana identidade incorpórea no jeito de sentir, ver, escutar e pensar o mundo, onde o mundo pode ser pensado.
Aos brasileiros perdidos de si mesmo que somos, índios de dezenas de etnias nos ofereceram três dias de gestos de boa-vontade. Como se nos dissessem: venham aprender a ser humano de novo.
Índio não é tudo a mesma coisa. Cada povo é como se fosse uma nação. Mas eles se tratam como “parentes”, atados em laços de ancestral ocupação do território que milênios depois viria a se chamar Brasil. Por extensão, e afetiva generosidade, os índios chamavam de parentes os muitos não-índios, brasilienses, brasileiros e estrangeiros, que estiveram no acampamento, uma algaravia de barracas, quiosques de comida, camelódromo, rodas de conversa, palco de palestras, circuito de dança.
Um estranha força emanava da voz e dos gestos dos líderes indígenas que subiam ao palco. Núbia Tupinambá pegou o microfone para defender a educação indígena diferenciada. “A educação do nosso povo vem da raiz dos nossos ancestrais, dos nossos encantados. Tem de ser comunitária, bilíngue”.
Núbia Batista da Silva é mestre em linguística pela UnB, mas há nela um mistério encantador que, nem de longe, vem do título universitário. Vem de um lugar que nós, não-índios, perdemos faz tempo.
Nós, os não-índios, ficamos em volta dos índios como insetos ao redor da chama de uma vela acesa no escuro (tirei essa imagem de um texto sobre índios, não me lembro onde). A inseta aqui saiu do Setor Cultural Norte, margeou o triste e abandonado Teatro Nacional e sentiu que não está sozinha. Escurecia e ela se deixou levar pelo canto ritmado e forte dos índios, como se a música saísse de dentro da Terra.
Por Conceição Freitas – Fotos: Igo Estrela – Daniel Ferreira - Metrópoles


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