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A HISTÓRIA DE LIS E MEL » Entrevista Benício Oton e Luciano Fares "O risco nos levou ao sucesso"


Entrevista Benício Oton e Luciano Fares "O risco nos levou ao sucesso"

*Por Ana Maria Campos – Helena Mader

O neurocirurgião Benício Oton e o anestesiologista Luciano Fares concederam entrevista ontem ao CB. Poder — parceria do Correio Braziliense com a TV Brasília — e comentaram os riscos envolvidos, o preparo e o estado de saúde das meninas Mel e Lis, 10 dias após a cirurgia que separou as siamesas craniópagas. Aos poucos, a personalidade das meninas começa a aparecer. Elas seguem internadas na UTI do Hospital da Criança de Brasília, onde se recuperam. A estimativa dos médicos é de que casos como o delas sejam de um para cada 2,5 milhões ou 3 milhões de nascimentos no mundo.

Todos os pacientes são importantes, mas, num caso tão difícil como esse, com duas meninas numa situação tão bonita, tão importante, tão frágil, há esse sentimento de que, talvez, vocês tenham estudado a vida inteira para chegar a esse momento?
Luciano — Eu falei isso algumas vezes. Eu falei isso para o doutor Benício um dia, lembra?
Benício — É para isso, mas, além de fazer esses casos excepcionais, a gente tem de atender o dia a dia.

A medicina aqui do país muda de patamar?
Benício — Eu acho que isso é uma coisa boa para a medicina daqui e para o nosso hospital, porque mostra que, realmente, a gente consegue fazer casos extremamente complexos dentro do serviço público de saúde. Lógico que a rede privada também é fantástica e, inclusive, nos ajudou também. Essa coisa emocional, alguns equipamentos, algumas coisas como realização de exames, quando a gente ia pedir para o pessoal, eles, basicamente, brigavam para realizar. Estava todo mundo envolvido, querendo ajudar. Fizeram pelo prazer de ajudar.

O HCB será referência agora para casos como esse. Vocês imaginam que, caso seja descoberto um caso em outras cidades, a tendência é de que haja uma procura pelo HCB a partir de agora?
Benício — É possível, mas a gente espera que o HCB passe a ser referência de outras malformações craniofaciais complexas, que precisam de várias especialidades. Tudo demanda a formação de uma estrutura bem complexa, e isso que é o bom, porque, aí, vamos atender muita gente que precisa.

A gente imagina que as meninas serão unidas para sempre, que a relação pessoal delas vai ser muito forte.
Luciano — Vai ser forte. Voltando só um ponto, se houver outro caso, nós, como equipe, faremos exatamente o que o pessoal de Nova York fez. Passando por isso, a gente quer multiplicar. A gente tem de multiplicar as informações adquiridas nesse procedimento. A generosidade surge, como eles (médicos norte-americanos) foram generosos também em passar muita coisa. Trocamos muita informação.

Qual era o grande risco da cirurgia? O que poderia dar errado que não deu?
Luciano — Era cheia de riscos. Muitos. Se não fosse assim, nós não teríamos conseguido. Os riscos deram o caminho que poderíamos seguir. Foi baseado em cada problema que nós teríamos uma solução. Foi assim. A nossa linha de pensamento era: pode acontecer isso? O que podemos fazer? E o plano B? E o plano C? E o plano D? O risco nos levou ao sucesso. As meninas estão se recuperando bem, mas o planejamento foi importante. Foi isso que dirigiu a nossa conduta: os riscos. E isso foi muito bom.
Benício — O trabalho antes da cirurgia foi enorme. A cirurgia, lógico, é o ápice, mas o que a gente se preparou antes, o que a gente ensaiou, que viu se ia acontecer isso, outras opções de tratamento e táticas cirúrgicas. Tudo estava desenhado.

A gente está mostrando imagens na tela dos moldes tridimensionais que foram usados na preparação da cirurgia. Contem sobre o treino.
Benício — Quando a gente soube e fomos buscar informação, nos falaram que a presença dos moldes tridimensionais ajuda muito a preparação da cirurgia. O que o cirurgião vê, o que o anestesista vê. Procuramos empresas que fazem isso. Alguns moldes são feitos no exterior, mas são muito caros, e a verba era pequena. Então, conseguimos uma empresa aqui de Brasília que fez os moldes fantásticos e sem custo para o hospital.

"Temos uma vantagem em relação à idade das crianças, que são muito jovens. Se, eventualmente houver alguma lesão, a capacidade de recuperação do cérebro é muito grande nessa idade" Benício Oton, neurocirurgião
Do ponto de vista neurológico, a previsão é de que fique certinho ou é cedo?
Benício — É cedo para falar. A nossa esperança e expectativa é de que fique tudo certo, mas claro que pode acontecer algo do ponto de vista motor ou cognitivo. A gente espera que corra tudo bem. Temos uma vantagem em relação à idade das crianças, que são muito jovens. Se, eventualmente houver alguma lesão, a capacidade de recuperação do cérebro é muito grande nessa idade.

Por isso a decisão de operar o quanto antes?
Benício — O quanto antes, considerando o risco neurológico. Não pode ser feita numa criança muito pequena, porque o volume de sangue é muito pequeno; então, várias coisas vão ditando o programa.
Luciano — Isso tudo foi pensado, e elas foram operadas no melhor momento delas.

Dá para perceber diferença de personalidade?
Luciano — A Mel sempre foi considerada a terrorista das duas. Brincava mais, e eu tinha essa percepção pessoal. A Camilla (Vieira Neves, mãe das gêmeas) fala que isso alterna entre elas, mas, comigo, a Mel sempre dava mais trabalho, arrancava monitor, pegava no meu pescoço. A Mel era muito mais ativa, e a Lis, mais tranquila, mais serena. Isso é uma percepção muito pessoal, e a Camilla acha que alterna, mas continua. A Mel arranca sonda.
Benício — A Lis já tirou dois drenos.
Luciano — A Lis está sapeca, muito responsiva, e isso é muito bom. São crianças de 9kg, nenezinhos.

O cérebro também era grudado ou só o crânio?
Benício — Uma parte do cérebro estava separada, e outra, fundida. Então, uma parte foi separada, e a outra teve de ser seccionada. Eu diria metade, metade.
Luciano — A equipe multidisciplinar foi pensada assim: eu faço. Tem alguém que faz melhor? Tem. Então, chama. A gente teve o melhor em todas as áreas. Eu não podia arriscar absolutamente nada. Foi esse o pensamento da montagem da equipe.

Como o caso refletiu entre os outros pacientes do hospital de outras especialidades? Notaram injeção de otimismo?
Benício — Eu tenho visto exatamente isso. Há uma confiança muito grande dos pacientes e familiares. Olha, aconteceu isso. Você faz uma coisa complicada, uma mais simples, então, vai ser tranquila. Eles estão mais confiantes de que o acompanhamento vai dar certo.

Nesse momento, o importante é a parte neurológica, a vida das crianças. No entanto, mais para a frente, (serão necessárias) algumas cirurgias a mais para mexer com a parte estética. É um corte muito grande? Fica faltando um pedaço do crânio?
Benício — Foi feito um planejamento muito grande para obter pele para a falha que ia ficar. Não só pele, como osso. Quando eu estava fazendo a separação, uma parte do osso foi retirado do crânio e, numa sala ao lado, o pessoal da cirurgia plástica foi trabalhar para dobrar o osso. Separar o osso em vários fragmentos para dobrar a quantidade de osso que a gente tinha. Uma placa maior de osso foi colocada na falha frontal e o verso foi conseguido com pequenos fragmentos. O osso, espera-se, que cole, que calcifique e não tenha falha. A pele foi conseguida em parte com enxertos, expansores de pele antes da cirurgia e rotação de retalho. O corte, realmente, é grande, mas é para proteger e conseguiu fechar todo o couro cabeludo. Tivemos uma conclusão bastante satisfatória. O que a gente quer agora é segurança, que elas saiam bem da cirurgia.

"A gente tem de multiplicar as informações adquiridas nesse procedimento. A generosidade surge, como eles (médicos norte-americanos) foram generosos também em passar muita coisa" Luciano Fares, anestesiologista
Um caso como esse é raro. Tem uma estimativa de quantos casos existem hoje no mundo?
Benício — A frequência estimada, não de siameses de uma maneira geral, que, talvez, seja de um para cada 100 mil nascimentos. Mas, de unidos pelo crânio, a estimativa é de um para cada 2,5 milhões ou 3 milhões de nascimentos. Sendo que a maioria desses que nascem, nascem com outros problemas. Além de problemas neurológicos, às vezes, cardíacos, renais e não sobrevivem. Às vezes, são unidos por partes essenciais do cérebro e, então, é impossível separação. O que resta para fazer a separação cirúrgica é de frequência muito baixa para os que nascem.

Imagens na gestação mostravam a possibilidade de separação?
Benício — Antes do parto, por ultrassom, foi realizada uma ressonância magnética gestacional para a gente ter ideia, e todas apontavam que haveria possibilidade de separação, sim. Logicamente, quando nascem, muda-se tudo. Elas estavam uma de face para a outra dentro do útero. Quando tinham 10, 12, 14 semanas estavam separadinhas, o útero é grande e suporta lá. Mas, à medida em que cresciam foram ficando mais juntas, mais unidas. Aí, entra fisioterapia para tentar separar e mais estudos. Elas crescem muito rapidamente.

Com quantas semanas de gestação foi detectado o caso?
Benício — Esse é um dos casos, talvez, mais precoces do mundo na publicação, talvez até o mais. Com 10 semanas de gestação, foi detectado. É um tempo muito precoce. Eu tive contato com 12 semanas de gestação.

Como foi a decisão de fazer essa cirurgia em Brasília no HCB? Cogitaram fazer em outro estado ou no exterior?
Benício — Quando foi visto pela primeira vez, eu falei, bom, aqui temos condições de fazer, sim. Basta planejar,  trazer profissionais e recursos materiais. Ninguém se negou, todo mundo fazia com prazer.

Tem algum caso que conheceram no exterior parecido com esse e que as crianças já estão separadas e recuperadas?
Luciano — Os casos são de literatura. Pessoalmente, não conheço nenhum. O doutor Benício acompanhou o caso de Ribeirão Preto, conheceu as crianças
Benício — Elas foram separadas com quase 3 anos. A separação foi há pouco tempo, acho que não tem nem um ano da cirurgia, então, não sei dizer como elas estão. Mas é totalmente diferente. Não existe um caso de craniópagos que seja semelhante. A nossa é uma união angular frontal com frontal.

Vocês falaram várias vezes da importância de ter uma equipe multidisciplinar. Havia também psicólogos. Qual foi a importância desse trabalho para fortalecer a família?
Luciano — Essa questão da psicologia, assistência social, fisioterapia, fonoaudióloga. Elas tinham um time paralelo para cuidar dos pais. O contato com a fisioterapia foi muito intenso, e a psicóloga entrava nesse contato. Na literatura, é colocada bastante a questão da importância que você tem de dar aos pais, porque eles têm de estar afinados com você. Nós dividimos pessoas que, durante a cirurgia toda, tinham contato com os pais. Foram 20 horas, e a gente precisava deixar esses pais tranquilos.

É muito difícil eleger um momento mais emocionante dessa história toda. Tem algum que vocês não vão esquecer nunca?
Benício — Eu não sei, porque todo mundo fala que a separação é crucial, mas acho que foi o momento inteiro. Quando entra na sala, já é um momento. Até a saída, quando os pais encontram as crianças do lado de fora, foi tudo fantástico.

A família de vocês também rezou e acompanhou tudo, né?
Benício — Até hoje, a minha mulher vai na trezena de Fátima e põe o nome das meninas todos os dias.
Luciano — A minha filha se envolveu também.

(*) Ana Maria Campos – Helena Mader – Fotos: Ana Rayssa/CB/D.A.Press – Correio Braziliense


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