Ama de leite, a mãe preta que
criou o Brasil e os brasileiros - Crônicas urbanas, crônicas de
afeto e do viver. Conceição Freitas) - A mulher negra, jovem, está sentada no chão. É jovem, alta, corpulenta,
braços fortes, pés graúdos. Amamenta um bebê
branco ao colo enquanto olha para um neném negro que está deitado ao lado. Tem
um ar melancólico, talvez resignado. A criança preta está atenta à mãe, como
quem espera a sua vez de tomar do leite materno.
Mãe Preta foi feita duas décadas
depois da lei que extinguiu, oficialmente, a escravidão no
Brasil. O autor, o piauiense Lucílio de Albuquerque exibiu a obra pela primeira
vez no Salão de Belas Artes de 1912, no Rio de Janeiro. Faz parte do acervo do
Museu de Arte da Bahia.
Tem a força de uma obra de arte,
180 cm x 130 cm, óleo sobre tela, mas não é uma iconografia rara da escravidão
no Brasil. É tristemente rico o acervo de fotos de amas de leite com os filhos
das sinhás.
Muitos de nossos pensadores mais
importantes, brancos, foram amamentados por mulheres negras, entre eles o
abolicionista Joaquim Nabuco.
Filho de um eminente advogado
baiano, senador da República, Quinquim nasceu em 1849, às margens do rio
Capiberibe, no Recife. Ainda bebê, foi morar com os padrinhos no Massangano,
engenho de Pernambuco. Até os 8 anos, cresceu sob os cuidados da madrinha, Ana
Rosa, e de uma rede de escravos que lhe serviam o tudo – a comida, o banho, o
banheiro, as traquinagens.
Em Minha Formação, sua
autobiografia, Nabuco cita – de passagem e sem lhe dar nome – a negra que o
amamentou e dele cuidou: “A noite da morte de minha madrinha é a cortina preta
que separa do resto de minha vida a cena de minha infância. Eu não imaginava
nada, dormia no meu quarto com minha velha ama, quando ladainhas entrecortadas
de soluços me acordaram e me comunicaram o terror de toda a casa.”
Com a morte de Ana Rosa, Nabuco
foi morar com os pais no Rio de Janeiro. Mas foi preciso levar a mãe preta
junto: “O menino está mais satisfeito depois que eu lhe disse que a sua ama o
acompanharia”, escreveu o amigo encarregado de levar o garoto à então capital
do país.
Ama de leite, mãe preta de
aluguel, era um ofício no Brasil escravocrata, de antes e de depois da
Abolição. Anúncios nos jornais de papel procuravam: “Preta, com muito bom
leite, prendada e carinhosa”. Negras que alimentavam o corpo e alma dos bebês
brancos. Era deles a primeira mamada, isso quando a mãe preta tinha filhos
próprios e com eles podia ficar.
Mães pretas para vender e alugar,
como anunciava o Jornal do Commercio (citações retiradas da tese de doutorado de Maria Elizabeth Ribeiro Carneiro, na UnB):
Vende-se uma crioulla de 18 anos
de idade, sem o menor defeito, muito ellegante e propria para ama de leite por
ter um filho recemnascido: lava, engomma e cozinha perfeitamente, rua da
Alfândega n. 251, sobrado.
Aluga-se para ama de leite, uma
preta de 17 dias de parto, com uma filha, muito carinhosa, garantindo-se a sua
boa conducta, na rua da Candelária n.27.
Aluga-se uma parda escura, para
ama de leite, muito carinhosa, de bom comportamento, com leite de seis dias, em
cada da parteira Meirelles, travessa das partilhas n.10, sobrado(…).
Essa não foi uma invenção
brasileira. “A prática das mães ricas delegarem às amas-de-leite a tarefa de
amamentarem as crianças foi trazida de Portugal para o Brasil”, escreve
Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala. Sem mãe preta, talvez não
houvesse nem Brasil nem brasileiros. As meninas brancas casavam-se muito cedo,
logo depois da primeira menstruação. Quando não morriam de parto, não tinham
fartura de leite. “Entregar as crianças às mucamas para que fossem amamentadas
e cuidadas era a alternativa possível”, escreve o mestre de Apipucos.
Escolhiam-se as amas de leite,
continua Freyre, entre as mais limpas, mais bonitas, mais fortes “para dar de
mamar a nhonhô, para niná-lo, preparar-lhe a comida e o banho morno, cuidar-lhe
da roupa, contar-lhe histórias, às vezes substituir-lhes a própria mãe”. Para
as escravas, ser mãe preta era a chance de sair da senzala para a casa grande.
Mas a proximidade com os senhores as deixava mais expostas ao abuso sexual.
As mães negras forjaram o povo
brasileiro às custas de si mesmas e de seus filhos. Salve elas.
Por Conceição Freitas – Foto: Lucílio
de Albuquerque - Metrópoles