O projeto de Lucio
Costa e a polêmica dos restaurantes de unidade e vizinhança
Nos últimos dias, um velho tema sobre a concepção urbanística do Plano Piloto e a conformação dos interesses de empresários e moradores da Asa Sul voltou à baila, como sói aconteceu há pelo menos 15 anos. Cuida-se do mais recente conflito envolvendo área na 208 Sul destinada a restaurante de unidade de vizinhança (RUV) e parte da comunidade que se insurgiu contra o corte de árvores e a realização de obras nesse imóvel do comércio local da quadra.
Incialmente
concebidos com o nome genérico de “casas de chá”, os RUVs fizeram parte do
projeto original de Lucio Costa e foram propostos para a Asa Sul — na
composição de detalhamentos urbanísticos e segundo planta registrada em cartório
ainda em 1961 — como espaços maiores nas extremidades dos comércios locais
(CLS) das quadras 100 e 200, com fachadas voltadas para as áreas públicas que
servissem de restaurantes às comunidades locais. Mais tarde, em 1988, dois
decretos ampliaram a destinação desses imóveis, passando a permitir usos
comerciais similares aos que já existiam em outras superquadras.
Ao longo dos anos,
os RUVs entre a 102 e a 116 Sul foram implementados com restaurantes, bares,
padarias, academias e mercados. Já nas quadras 200, apenas alguns possuem
edificações, havendo forte oposição dos moradores a qualquer obstrução das
áreas ainda não construídas e hoje ocupadas por calçadas, ciclovias e árvores.
Argumentam, não sem razão, que os comércios tomaram proporção maior que a
prevista por Lucio Costa e que se permitiu que fossem ocupados por
estabelecimentos de maior porte e por atividades muito superiores às que esses
locais comportam, com grande impacto no tráfego de veículos e o consequente
comprometimento da escala residencial das quadras.
Em 2006, o mesmo
imóvel da 208 Sul foi cercado para obras e moradores se mobilizaram para
impedir a construção, o que levou o poder público a decretar a desapropriação
de todos os RUVs ainda não edificados. Depois de anos, e diante de disputas
judiciais, o decreto caducou sem o pagamento das indenizações, de modo a
perpetuar os impasses e agravar os prejuízos e a insegurança jurídica para as
partes envolvidas. O mesmo se deu, em 2011, na 213 Sul e mais recentemente, em
2017, na 207 Sul, cuja solução apresentada também foi a de desapropriar o
imóvel e impedir qualquer construção. Deparamo-nos, no caso de agora, com
decisão judicial em que se proibiu que a proprietária promova alteração no
imóvel, sob pena de multa de R$ 50 milhões.
Embora a população
tenha se habituado a ver esses espaços como livres e agregados às áreas verdes
entre os blocos residenciais, a verdade é que não se trata de espaços públicos,
mas de unidades imobiliárias comerciais particulares, cujos avanços laterais
com construções são permitidos pela legislação local, ainda que mediante
autorização dos órgãos públicos e preservação de árvores ou necessidade de
aprovação para retirá-las.
O direito de
edificar nesses imóveis está assegurado também pelas normas que tratam do
tombamento, como se denota da Portaria Iphan nº 314/1992, ao prever que a
escala bucólica que confere a Brasília o caráter de cidade-parque é configurada
em todas as áreas livres, contíguas a terrenos atualmente edificados ou
institucionalmente previstos para edificação e destinadas à preservação
paisagística e ao lazer.
Sem menosprezar a
reivindicação de parte da comunidade, não se cuida propriamente de preservação
de área verde prevista na concepção urbanística original da cidade, por se
tratarem de imóveis comerciais devidamente registrados em cartório, previstos
no Pdot, adquiridos regularmente e cujas obras encontram amparo legal ou mesmo
foram aprovadas pelos órgãos públicos.
De se notar,
assim, que a interferência demasiada e injustificada do Poder Judiciário, a
claudicância do poder público em dar solução ao problema, acenando claramente
se arcará com os ônus da desapropriação ou permitirá aos donos que bem exerçam
os seus direitos, e a relutância de parte da comunidade em permitir que os
proprietários construam e deem uso econômico aos RUVs, contribuem para a configuração
de um ambiente de insegurança jurídica e desestímulo à realização de
investimentos que possam fomentar a economia da cidade, dando azo também a
possíveis medidas judiciais reparatórias contra o Distrito Federal, em franco
prejuízo para a sociedade, diante da imobilização patrimonial que já conta mais
de uma década.
Rodrigo Fernandes de Moraes Ferreira - Advogado, professor universitário, foi procurador-geral da Terracap e presidente da Comissão de Defesa da Ordem Urbanística da OAB-DF - Foto/Ilustração: Blog - Google
Rodrigo Fernandes de Moraes Ferreira - Advogado, professor universitário, foi procurador-geral da Terracap e presidente da Comissão de Defesa da Ordem Urbanística da OAB-DF - Foto/Ilustração: Blog - Google