As (muitas) ruas
que os brasilienses inventaram na cidade sem ruas
Crônicas urbanas, crônicas de afeto e do viver (Conceição Freitas)
Nos 37 parágrafos
do projeto de Lucio Costa para Brasília, a palavra rua aparece
uma vez: a Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. O arquiteto inventou uma cidade
inteira sem uma rua. Era desse jeito que os modernos pensavam: que rua era uma
via caótica demais para uma polis planejada e destinada ao
bem-viver urbano. No lugar delas, as quadras, as vias, as rodovias, os
eixos, as tesourinhas, as passagens subterrâneas, os viadutos, as pistas de
rolamento, as estradas-parque. Rua que é bom, nada.
Não se pode ser injusto, porém. Lucio Costa se
inspirou na Rua do Ouvidor para compor o Setor de Diversões Norte e o Setor de
Diversões Sul, o SDN e o SDS. Pra nós, o Conjunto e o Conic. O modernista
queria algo geométrica e geograficamente planejado. Em nada assemelhado a uma
via estreita, ladeada por todo tido de comércio, tudo colado e misturado, como
era a Rua do Ouvidor nos tempos áureos.
Se não estavam
no projeto de Brasília, as ruas estavam e continuam na memória
afetiva das cidades. Logo, os brasilienses foram dando nome aos espaços
públicos que lembravam ruas. A da Igrejinha foi a
primeira delas. Vieram outras: das Farmácias, das Elétricas, da Informática, do
Shopping, dos Tecidos, dos Restaurantes, das Cabeleireiras.
Fora do Plano
Piloto, as ruas também se vingaram dos modernos. Há delas em quase todas
as cidades-satélites. Há as que guardam a memória candanga mais remota – até onde 60 e poucos anos podem
ser remotos. A Rua do Sossego, na Candangolândia, é uma das mais antigas de
Brasília. Começou com uma fileira de casas de madeira destinadas aos
primeiros engenheiros que vieram construir a nova capital. Bernardo Sayão
e família moraram nela.
Antigo acampamento
da construtora que fez o Palácio da Alvorada, a
Vila Planalto é rica de ruas que desenham a história: Rua dos Engenheiros, Rua
dos Operários, Rua da Igreja, Rua do Açougue, Rua dos Alojamentos, Rua dos
Conselheiros, Rua DFL (pronuncia-se defelê, acrônimo de Departamento de Força e
Luz). As ruas da Vila também reverenciam os estados de onde vieram os candangos
que ergueram essa cidade: Rua Maranhão, Rua Sergipe, Rua Minas Gerais, Rua
Piauí. Só não tem Rua Goiás, imperdoável esquecimento.
A 24km do Eixão, a Fercal tem ruas com nome de
gente. E não é Getúlio Vargas, Almirante Barroso, Juscelino Kubitschek. São
nomes de antigos moradores da rua. Numa delas, a Rua dos Garrinchas, moram
descendentes de Vicente Teixeira Coelho, o Garrincha. O apelido vem de
garrincha-chorona, pássaro que só existe no Brasil. Vive pulando no chão e,
quando quer cantar, sobe em árvores, em pedras, onde houver um palco de
passarinho. (O Mané Garrincha tinha esse apelido porque gostava de caçar
garrinchinhas).
Há ruas muito mais antigas ainda no quadrado. De
200 anos É a Rua do Mato, na Fercal. Antes chamada de Vão do Buraco, é um lugar
escondido ao pé das escarpas da Chapada de Contagem. Há notícias de que os
primeiros moradores apearam na região no fim do século 18. Eram nordestinos que
vinham a pé ou de burro pela Picada da Bahia atrás de um jeito melhor de viver.
Não nos faltam histórias candangas de subversão da
maquete, não nos faltam ruas. E rua, não custa lembrar, é a única coisa de que
os políticos e os poderosos em geral têm medo, porque elas podem ser
incontroláveis.
Conceição
Freitas – Arte: Kacio Pacheco - Metrópoles