O desprezo eterno pela Rodoviária, a obra seminal
de Brasília. A Rodoviária é o marco zero, o cruzamento dos eixos. É onde a
Brasília periférica se apropria do Plano Piloto, onde ela é mais brasileira. (Por Conceição Freitas)
Se Brasília nasceu “do
gesto primário de quem assinala um lugar e dele toma posse”, esse gesto, lugar
e posse é a Rodoviária. Síntese de Brasília e
do Brasil, ferida aberta no epicentro da capital, mistura de arquitetura,
urbanismo e vida, a Rodoviária é o próprio sinal da cruz de Lúcio
Costa. É o lugar onde o Brasil real toma posse do Brasil idealizado
pelos modernos.
A Rodoviária é o marco zero, o cruzamento dos
eixos, lugar de chegada e partida. É onde a Brasília periférica se apropria
do Plano Piloto. É onde a utopia se realiza de seu modo
caótico, imperfeito, sofrido, desprezado, injusto, como o Brasil.
Engenhosa e lírica, simbólica e funcional, a
Rodoviária são várias: pista, viaduto, terminal de ônibus, shopping, feira,
praça, estacionamento. É o Buraco do Tatu e o Salão de Passos Perdidos. O
primeiro é um nome que a população inventou; o segundo, tão poético, está no
desenvolvimento do projeto, segundo o Inventário Nacional da Plataforma
Rodoviária,feito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan) em 2002.
(O Salão dos Passos Perdidos são
os dois pátios do piso inferior, o leste e o oeste, nos quais ficam os pontos
de ônibus e os muitos e diversos comércios. Dele, chega-se também à estação do
metrô.)
As fissuras estruturais da
Rodoviária começaram a surgir já nos primeiros anos após a
inauguração da obra, a 12 de setembro de 1960, dia do aniversário de Juscelino. Feita às pressas, como tudo o
mais na cidade, a Plataforma Rodoviária sempre avisou a quem se dispusesse a
ouvi-la que precisava ser tratada como Brasília trata o aeroporto.
O destino dado aos dois é tão cruelmente diferente
tal qual o tratamento que o país historicamente dá aos ricos e aos pobres.
O aeroporto de Brasília é considerado um dos melhores do
país; a Rodoviária, uma das piores.
Há estudos, os mais detalhados, sobre as feridas
estruturais da Rodoviária. Um deles é o Inventário Nacional feito em 2012 pelo
Iphan. Nele, revela-se o que poucos sabem: que a proposta inicial de Lúcio
Costa era o de uma grande laje contínua e completa, conectando os setores
centrais (diversões, comércio, bancos, culturais).
“Porém, devido ao elevado custo que teria a
execução dessa proposta, acabou-se adotando uma solução vazada, em “H”, cujo
projeto de adaptação ficou a cargo da Novacap. Essa adaptação acabou resultando
em uma solução “mais elegante” do que a ideia inicial de laje contínua,
permitindo maior iluminação e ventilação”, relata o Inventário. Lúcio Costa,
com sua rara capacidade de reconhecer que a emenda ficou melhor do que o
soneto, comenta em Brasília Revisitada: “O projeto desenvolvido pela Divisão de
Urbanismo (da Novacap) resultou mais elegante e arejado”
A construção da Rodoviária deu-se
como o nascimento do mundo – tudo de uma só vez. Para que a cidade
surgisse, era preciso demarcar o marco zero, calcular o exato lugar
onde a borboleta (ou o avião, como queiram) pousaria em relação aos pontos
cardeais, ao nascer e ao pôr-do-sol, ao relevo do terreno e às chapadas que o
contornam.
Feitos os cálculos, demarcado o chão, foi preciso
cavá-lo em 10 metros de profundidade – movimento colossal de terra, que foi
levada para a Praça dos Três Poderes, como se Deus mudasse o lugar de uma
montanha para que a cidade pudesse finalmente pousar sobre o cerrado.
A Rodoviária foi o mais intenso casamento do urbanismo com a arquitetura, de Lúcio Costa com Oscar Niemeyer. As equipes dos dois
trabalharam simultânea e conjuntamente para desenvolver o projeto viário dos
eixos e dos viadutos e o projeto arquitetônico do terminal rodoviário.
Invenção, capacidade, compromisso, soberania – tudo
junto e misturado. As ruínas da Plataforma da Rodoviária são o retrato
trágico das ruínas do Brasil.
Por Conceição Freitas – Fotos:
Instituto Moreira Sales – Acervo IGPA,UCG/Goiânia – Arquivo Público/DF -
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