André Malraux
caiu do céu para nos mostrar onde está a esperança. O escritor francês viu em
Brasília, 60 anos atrás, uma luz depois das trevas. A espécie humana e a
civilização não estavam de todo perdidas. (Por Conceição Freitas)
Quem gosta da história de Brasília já deve ter ouvido falar de André Malraux, o
pensador francês que, em 25 de agosto de 1959, em solo candango, chamou a
cidade de “capital da esperança”. Sessenta anos depois, o caudaloso,
contundente e por vezes hiperbólico discurso do ministro da Cultura de De Gaulle
parece cair do céu para me acalentar e, espero, aliviar o coração das mulheres
e dos homens que porventura me leem nestes 59 anos da cidade que Lucio inventou.
O discurso de Malraux, diante de Juscelino, trazia as marcas do pós-guerra e o peso da
Guerra Fria. Era um tempo em que a humanidade temia que um comunista ou um
capitalista apertasse o botão do fim do mundo.
Eram dias atordoados aqueles, no qual o bem o mal
estavam cristalizados no desespero: “Num mundo sem chave, onde o Mal se torna
fundamental enigma, qualquer sacrifício, qualquer obra-prima, qualquer ato de
piedade ou heroísmo propõem um enigma tão fascinante quanto o do suplício de
uma criança inocente, obsessão de Dostoiévski; quanto o de todos os pobres
olhos humanos que descortinaram uma câmara de gás antes de se fecharem para
sempre: a existência do amor, da arte ou do heroísmo não é menos misteriosa que
a do mal…”.
Malraux percebeu que algo de grandioso (e
fascinante e heroico e misterioso) acontecia nas profundezas de um país
periférico, fruto da vontade humana. Passada a guerra, holocausto vencido, era
necessário estabelecer “um plano mundial de exploração das riquezas naturais em
proveito das nações que as detêm e somente destas”. E nessa luta épica, “o
homem deve dar formas dignas de si mesmo”. O escritor havia participado
ativamente da resistência à ocupação nazista.
Era o que estava sendo feito diante dos olhos do
francês: “Quase todas as grandes cidades haviam se desenvolvido por si mesmas,
em volta de um lugar privilegiado. Que hoje a História contemple conosco o
despontar das primeiras edificações de uma cidade feita surgir unicamente por
vontade humana!”. Brasília era uma forma digna do homem,
da civilização, da cultura.
Malraux cita um trecho do projeto do plano-piloto de Brasília (com hífen e caixa
baixa porque ainda não era um topônimo). Para que uma cidade moderna possua os
atributos inerentes a uma capital, “a condição primeira é achar-se o urbanista
imbuído de uma certa dignidade e nobreza de intenção [grifo do
autor], porquanto dessa atitude fundamental decorrem a ordenação e o senso de
conveniência capazes de conferir ao conjunto projetado o desejável caráter de
monumentalidade”.
André Malraux, ministro francês da Cultura, e o presidente Juscelino Kubitschek
Então André Malraux indaga: “Que cidade moderna se
preocupara, até agora, com tal nobreza de intenção?”. E constata: “Trata-se, ao
pôr a arquitetura a serviço da Nação, de restituir-lhe parte da alma, que
perdera”. Com Brasília, a arquitetura recupera o
significado que tinha nos templos e nas catedrais, que transcendia o luxo para
servir à alma. “Salve, capital intrépida, que recordas ao mundo estarem os teus
monumentos a serviço do espírito!”
O francês se dava conta de que, da ferida vermelha
aberta no Cerrado, surgia um lugar onde ancorar a esperança: “O objetivo de
nossa civilização, no âmbito do espírito, se torna, assim, depois de ter
descoberto as técnicas que reintegram os demônios no homem, o de buscar as
técnicas que reintegrariam nele os deuses”. Vale lembrar que a humanidade havia
passado pela brutal experiência de ver a ciência a serviço da destruição, com a
bomba atômica sobre Nagasaki e Hiroshima.
Decididamente, André Malraux tinha sido possuído
pelo desejo de crer no homem e na civilização, e a construção de Brasília,
em turnos ininterruptos de trabalho operário, pareceu-lhe o
lugar onde ancorar a crença na espécie humana/urbana: “Que nos seja dado
construir uma civilização que se assemelhe à nossa esperança, uma civilização
que coloque todas as grandes obras da humanidade a serviço de quantos homens as
reclamarem!”.
E a civilização só se realiza no saber: “O que a
cultura deve conquistar para criar seu tipo de homem exemplar é presença, em
seu seio, de todas as formas de arte, de amor, de grandeza e de pensamento que,
no curso de milênios, permitiram ao homem ser menos escravo”.
E o Brasil construía a capital
dessa esperança, era luz depois das trevas.
Por Conceição
Freitas - Fotos: Arquivo Público do DF - Metrópoles



