João
Gilberto, Brasília e Juscelino, o Presidente Bossa Nova. A morte do músico
genial acaba sendo um reencontro desolado com o Brasil que tanto esperamos e de
que tanto precisamos – a utopia. (Por Conceição Freitas)
Se Brasília tivesse de escolher um artista
brasileiro como síntese de si mesma, seria João Gilberto. Não à toa, Juscelino era chamado de Presidente Bossa Nova, como na
música de Juca Chaves: Bossa nova mesmo é ser/presidente/Desta terra descoberta por Cabral/Paratantobastaser/Tãosimplesmente/Simpático/Risonho/Original./Depois desfrutar da maravilha/De ser presidente do Brasil/Voar da Velhacap pra Brasília/ver a alvorada e voar de volta ao Rio.
A musiquinha singela grudou em Juscelino o epíteto
com o qual até hoje é lembrado. Um dos criadores da Bossa Nova, Carlinhos Lyra
disse a Ruy Castro, que transmitiu a Claudio Bojunga, biógrafo de JK: “A Bossa Nova só foi possível graças a
Juscelino”.
Talvez haja certo exagero, não sem fundamento. Eram
os anos dourados. Fazia pouco tempo, Getúlio havia se suicidado e o Brasil
parecia mais uma vez afundado no pântano das elites devoradoras. Mas algo se
movia – nas artes, na cultura, nos esportes, na política. Subitamente, os brasileiros foram envolvidos por um raro
sentimento de inquietude e invenção na literatura, nas artes
plásticas, no futebol, no cinema, na arquitetura, na música: Guimarães Rosa,
João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Rubem Braga, Glauber Rocha, Lygia
Clark, Hélio Oiticica, Pelé, Garrincha, Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Tom,
Vinícius e João Gilberto – cito alguns, porque a lista é longa (e eterna).
Finalmente, o Brasil parecia ter acordado, aquele
instante que havia muito se esperava. Daquela metade dos anos 1950 em diante, o país mostraria ao mundo a singularidade de sua formação
mestiça, tropical e continental.
Do mesmo modo que João Gilberto limpou os excessos
melódicos dos grandes cantores da época, os arquitetos modernos livraram os
edifícios de tudo o que não fosse estrutural. Queriam a beleza nua, como quem
busca a essência das coisas. Os poemas ficaram pura pedra, como os de João
Cabral. As construções, puro concreto, como as de Brasília. A paisagem urbana,
vazia.
Caetano Veloso, Vladimir Safatle, Braulio Pedroso
escreveram que, com a morte de João Gilberto, foi-se o sonho moderno, a utopia
de transformar esse território numa Nação. A morte física como representação
simbólica da morte de que temos morrido todos os dias, nos últimos tempos.
Naquela segunda metade dos anos 1950, tudo parecia
que ia dar certo. Alguém lembrou do chute de Pelé, de antes do meio do campo,
para o gol que faria toda a esquerda se esquecer, temporariamente, da ditadura
militar e passar a torcer pelo Brasil na Copa de 58. (Juscelino assistiu ao
último jogo no Brasília Palace Hotel).
Um país de Pelés, aquele. “Sim, escreveu Safatle, havia algo de utopia
naquela música e seria necessário ouvi-la escutando também a utopia do tempo
histórico que ela expressa. Se do ponto de vista arquitetônico o Brasil
mostrará sua carga utópica através da instauração geométrica da conquista de
seu próprio interior, isso através de um sonho modernista que redundará em
Brasília e suas misturas de árvores distorcidas do cerrado e curvas de concreto
armado, havia a versão musical dessa carga utópica, e ela se encontrava na
bossa nova.”
Braulio Tavares comparou o arquiteto e o músico:
“Alguém disse da arquitetura de Oscar Niemeyer que ela demonstrava o quanto o
concreto é leve. As harmonizações e as divisões rítmicas de João Gilberto
mostravam que era possível haver uma ultra-sofisticação por trás de estruturas
aparentemente simples, nuas, despojadas.”
Caetano lembrou que João Gilberto furou a casca do
Brasil, até então uma “região ensimesmada”. A arquitetura moderna também tirou
o país de dentro de si e o apresentou ao mundo.
A morte de João Gilberto é um reencontro desolado
com um Brasil que tanto queríamos e de que tanto precisamos.
Por
Conceição Freitas – Metrópoles