Depois de anos de violência, Dayana livrou-se do ex-marido e, agora,
ajuda mulheres na mesma situação a partir do Juntas Somos Mais Fortes
Martírio na vida adulta. A maioria das
vítimas de relacionamentos abusivos no DF tem entre 18 e 40 anos. Dependência
econômica, medo de ficar sozinha e pressão familiar são alguns dos fatores que
explicam a dificuldade de elas acabarem com o namoro ou casamento
Essa é a história da menina que sempre sonhou com o
príncipe encantado. Que virou adulta e encontrou alguém para depositar amor e
esperança. Ele não era um monstro, agressivo e violento. O príncipe estava ali,
em algum lugar, durante alguns anos. Até que, pouco a pouco, foi sumindo. De
forma lenta, gradual. Nada aconteceu de repente. Identificar que o
relacionamento tinha se tornado abusivo foi difícil. Primeiro, vieram as
agressões verbais. Depois, as físicas. Mas as coisas melhorariam. Promessas e
mais promessas. E, pouco a pouco, o príncipe foi embora de vez. Restou apenas a
violência. E a menina, agora mulher, tinha de decidir se lutaria pela vida ou
se sucumbiria pelas mãos do agressor.
A então menina por trás desse relato é Dayana de
Freitas, 37 anos, servidora pública. Mas é também a história de muitas outras
mulheres. De tantas outras que passaram e ainda passam pela situação. Na
terceira reportagem da série Elas no Alvo, o Correio conta o drama de mulheres
adultas que sofreram abusos físicos, psicológicos e violência doméstica por
pessoas nas quais depositaram confiança e amor: os próprios companheiros.
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública, em
91,7% das ocorrências de Lei Maria da Penha no primeiro trimestre do ano, as
agressões no Distrito Federal ocorreram dentro de casa (veja arte). De janeiro
a junho, a pasta registrou 7,8 mil ocorrências de violência doméstica. E,
apesar de a violência estar presente em todas as idades da mulher, como mostra
o jornal nesta série, a maioria das vítimas (65%) está na faixa etária de 18 a
40 anos.
Para a especialista do Departamento de Sociologia
da Universidade de Brasília (UnB) Lourdes Bandeira, não há lugar onde a mulher
possa estar livre da violência tanto em espaços públicos quanto privados. “As pesquisas
têm mostrado que a maioria das mulheres que vivem no contexto da violência são
assassinadas por pessoas com as quais elas tinham vínculos afetivos”, afirmou.
As agressões físicas, no entanto, não ocorrem de
repente, como explica a professora da Universidade Católica de Brasília (UCB)
Heloísa Maria de Vivo Marques, do curso de psicologia jurídica e coordenadora
do projeto SIM — um serviço de atendimento integral a mulheres em situação de
violência doméstica. É, aos poucos, que o relacionamento se mostra abusivo.
“Começa de forma sutil. Ele (abusador) vai controlando a roupa que ela usa,
controlando os amigos que tem, o corte de cabelo, começa sem a violência física.
Ele vai se aprimorando”, alertou.
A história de Dayana confirma esse roteiro. “Como
eu não tinha percepção do que era violência psicológica, comecei a sofrer com o
ciúme excessivo. Mas eu achava que aquilo era uma prova de amor”, explicou. Os
dois começaram a namorar quando ela tinha 14 anos — ele era um ano mais
velho — e se casaram aos 18, quando Dayana engravidou do primeiro filho.
O ciúme inocente virou controle: ela não podia trabalhar, não podia ter amigos
e até a roupa que ela vestia era controlada. “Em 2007, eu sofri agressão
física. Eu tomei coragem, dei parte e, depois, tirei, porque ele sempre
prometeu que mudaria, que aquilo era só porque ele estava nervoso”, disse.
Além dos socos e arranhões, Dayana era vítima de
violência psicológica — uma das características de relacionamentos abusivos.
“Ela (violência psicológica) foi a mais devastadora, porque eu comecei a ficar
em cárcere privado dentro de mim mesma. Eu comecei a não sentir vontade de
viver”, relembrou. “Ele me desqualificava, me incapacitava como mulher, dizia
que eu nunca seria ninguém, que o meu papel era viver dentro de casa”, relatou.
Respeito: A situação se arrastou até 2012, quando Dayana quis
dar o primeiro ponto final naquela história: “Eu decidi que não queria mais
aquilo. Fiz a denúncia, e ele saiu de casa.” No entanto, mesmo separados, o
ex-companheiro fazia ameaças, tentava invadir a casa da ex-mulher e ameaçava
tirar a guarda dos filhos. “Ele dizia que eu não podia ter outro homem, que, se
eu tivesse, ele me mataria”, revelou. Com gravações e outras provas, a
servidora procurou a polícia e ganhou, na Justiça, a medida protetiva. Ainda
assim, o ex-marido comprou uma casa na mesma rua dela. “Isso me desestabilizou
totalmente. Por que ele sempre queria estar perto de onde eu estava?”,
questionou. A resposta veio pelo Ministério Público, e o homem ficou preso 30
dias por descumprimento da medida.
“Eu pensei em me matar”, confessou Dayana. Após
acompanhamento psicológico, atendimento em hospitais e ajuda do Pró-Vítima —
programa do governo de atendimento psicossocial —, a servidora reescreveu a
própria história e, hoje, oferece suporte a mulheres que passam pela mesma
situação por meio de um projeto próprio de acolhimento nas redes sociais, o
Juntas Somos Mais Fortes. “Agora, ele não me procura mais. Não me perturba
mais. Hoje, ele me respeita. Eu não tenho mais nenhum contato com ele, mas ele
ainda tem contato com os meus dois filhos. Eu diria que ele aprendeu a lição”,
ressaltou.
Quase 20 anos de sofrimento: A
história de Maria (nome fictício), 65 anos, é parecida com a de Dayana. Ela
saiu de casa, no interior de Minas Gerais, aos 18 anos para casar e dividir a
vida com um rapaz de Brasília. Reservada e séria, a jovem queria estudar e
trabalhar. “Eu via no casamento uma saída. Naquela época, as meninas casavam,
porque viam no casamento uma saída para todos os problemas”, contou. Mas, tão
logo se mudaram para a capital federal, o martírio começou. Nos quase 20 anos
de casada, Maria sofreu agressões físicas e psicológicas. Xingamentos e
humilhações. “Os dois tipos de violência eram terríveis para mim. Não sei dizer
qual era a pior. Tudo te machuca muito, e eu sentia muita raiva. Achava que
aquilo não era justo”, disse.
O problema era que, sem estudos ou trabalho, Maria
não conseguia se livrar da relação. “Eu me perguntava: Como vou me separar? Sou
dona de casa, sem perspectiva”, relatou. O trabalho sempre tinha sido um sonho,
mas só foi depois dos 25 anos que ela voltou a estudar. “Ele achava que toda
mulher que trabalhava traía o marido. E eu chorava todos os dias para
trabalhar. Eu não suportava aquela vida de dona de casa e sofrendo violências
todos os dias. Não era aquilo o que eu queria para mim, não era justo.
Sempre quis a minha independência”, contou. “Eu não tinha coragem de me
separar. À época, tinha duas filhas pequenas, eu tinha medo. Separei na hora
que deu”, disse.
O dia do basta chegou quando, em uma briga, o
marido a jogou contra uma mesa de vidro, e ela cortou o braço. “Eu tentei
separar mais de uma vez por ano. Mas ele pedia socorro para todo mundo. Ele
fazia uma agressão física, eu falava em separar, ele ajoelhava, pedia perdão, e
eu pensava que ele ia melhorar, mas, na semana seguinte, estava fazendo tudo de
novo”, lamentou Maria. Mesmo depois de separados, ele a perseguiu por mais de
uma década. Maria só se viu livre da relação depois que o ex-marido se mudou
para outra cidade. “Tudo mudou quando eu me olhei no espelho e disse: saia
dessa, se valorize, goste de você. Faça algo por você! Não espere nada dos outros!
Lute!”
Anjo e monstro: Poder, controle, posse: três
palavras muito comuns em relacionamentos abusivos. Para Lourdes Bandeira, do
Departamento de Sociologia da UnB, pequenas atitudes controladoras no início da
relação são potencializados por meio de uma cultura machista e patriarcal da
sociedade. “É a ideia da posse. Ela vira propriedade dele e, sobre ela, ele vai
exercer seu controle”, explicou. É por isso que, em muitos relatos, o homem é
carinhoso no começo, mas, depois, se torna agressivo. “É isso o que acontece:
ele era um anjo e, depois, vira um monstro. Mas aquelas atitudes deveriam estar
presentes no começo do relacionamento”, alertou.
Suporte legal: A Lei nº 11.340/06, a Lei
Maria da Penha, define violência doméstica ou familiar como toda ação ou
omissão, baseada no gênero, que cause morte, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da
família e em qualquer relação íntima de afeto, em que o agressor conviva ou
tenha convivido com a agredida.
(*)Helena Mader – Deborah Fortuna – Adriana
Bernardes - Foto: EdAlves/CB/D.A.Press – Correio Braziliense



