Neste
vazio de cidade moderna, a seca existe para nos humilhar. Nenhuma sombra para
nos proteger do inferno. O urbanismo servindo às veleidades estéticas enquanto
somos entregues à crueldade do Sol. (Por Conceição Freitas)
Eu
poderia escrever sobre a seca, mas estou seca. Nada floresce em mim nesta
sexta-feira (20/09), 107º dia sem chuva, pelo menos até as 13h44. Fomos
abandonados à própria sorte como os primeiros humanos atravessando o primeiro
deserto na crueldade silenciosa da Terra.
Eu
poderia sonhar com a chuva, mas ficou tudo tão seco dentro de mim que nem os
sonhos mais tolos florescem, nem mesmo os pesadelos. Tudo congelado de calor. O
que me lembra uma cena logo no começo de “Uma noite de 12 anos”, filme que
conta o cotidiano da impiedosa prisão de Mujica e seus companheiros durante a
ditadura militar no Uruguai.
Mujica
está numa casa, clandestino. Quatro pessoas conversam na cozinha e de repente
um deles comenta diante da apreensão contínua dos fugitivos: “Calma, está tudo
tranqüilo. Ouça o silêncio”. Num ímpeto, Mujica se levanta. Percebe que aquela
calmaria é sinal de muito perigo, de que algo terrível vai acontecer. E
acontece.
Assim têm
sido os dias nessa impiedosa temporada de seca no quadradinho. Esperamos a
chuva, mas o corpo e a alma já não suportam mais o silêncio devorador que nos
envolve, dia após dia. Silêncio sem sombra, sem ar, sem movimento, implacável
como o anúncio da morte.
A seca
deste 2019 é a metáfora candanga da tragédia que nos engole. Seguimos sem rumo
como os fantasmas, entorpecidos diante da potência do ataque, da indiferença do
real. Nem a florescência colorida das árvores já nos acalma. Chega um momento
em que a beleza é quase uma afronta.
Neste
vazio de cidade, a seca existe para nos humilhar. Centenas de metros,
quilômetros até, sem nenhuma sombra para nos proteger do inferno. A arquitetura
e o urbanismo servindo às veleidades estéticas enquanto nós, os humanos que as
legitimamos, somos entregues à crueldade do Sol, do asfalto e do concreto, um
trio que devora a dignidade urbana.
Mas como
a vida é um suceder inesgotável de acontecimentos visíveis e invisíveis,
conhecidos e desconhecidos, prováveis e improváveis, nuvens fofas começaram a
se juntar no céu enquanto eu escrevia essa crônica lamurienta.
Já nem
importa mais se é a chuva do caju, do abacaxi ou do tamarindo, chuvinha,
chuvaréu ou tempestade. Qualquer milímetro cúbico de água reacende o verde dos
imensos gramados brasilienses — é incrível como a grama candanga revive com
qualquer chuvisco.
Tem gente que é grama: basta meio copo d’água pra navegar, como diz
o poeta. Mas a inclemência dos céus está passando dos limites. Talvez tenha
chegado a hora de aprender a nadar em rio seco.
Por
Conceição Freitas - Fotos: Igo Estrela - JP Rodrigues - André Borges -
Jacqueline Lisboa - Daniel Ferreira - Metrópoles
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BRASÍLIA - DF