Viagem ao começo do mundo, do
Cerrado à Amazônia, das chapadas à floresta. O voo de Brasília a Manaus é um
tour de passarinho na gaiola. Depois, virá o barco até São Gabriel da
Cachoeira, de onde desce o Rio Negro. (Por Conceição Freitas)
Escrevo de muito longe. De
Manaus, onde nasci. Da margem do Rio Negro, de onde vim e pra onde sempre
volto. Lá de cima, vi o grande espetáculo, as duas línguas gigantes se
encontrando, o Negro e o Solimões. No começo, não se misturam, dado o impacto
das diferenças. Só mais adiante, depois de terem se acostumado um ao outro, se
transformam no Amazonas, o mais absoluto dos rios.
Aqui tudo é descomunal, tudo
existe na escala monumental. Mas, ao contrário de Brasília, não nos humilha. A
natureza nunca nos humilha, mesmo quando está muito brava. E, segundo me
contaram, ela esteve bastante irada. Dias atrás, caiu uma tempestade
aterrorizante, e ainda estamos no comecinho do período chuvoso aqui, como aí,
no Cerrado.
O voo de Brasília para Manaus
é um tour aéreo pelos dois maiores biomas brasileiros e por alguns de seus
maiores rios. Lá de cimão, dá pra ver as grandes chapadas do Planalto Central.
Queria ter algo de Euclides da Cunha pra escrever com a devida soberania e
grandiloquência. Os chapadões caem em nesgas, como se a terra fosse um mar
petrificado. Depois, ela se acalma e vira planície. E surge o Rio Tocantins,
ainda cheio de praias que lá de cima reluzem feito joias derretidas.
Passageiro de avião é tipo
passarinho voando na gaiola: tem a dimensão de tudo quanto há, mas não tem o
domínio do voo nem pode dar rasante, aterrissar nas folhas ou bicar as águas.
Fico pensando, e esperando, que quando eu morrer seja assim: morta, terei pelo
menos o consolo de passear por toda a Terra, mesmo sabendo que dela só
receberei indiferença.
Não demora e surge o Rio
Araguaia, com bem menos praia, quase nenhuma, e talvez um pouco mais largo,
pelo menos no trecho que me coube ver. Os dois grandes rios não sabem ainda,
mas inclinam-se doce e longamente, um em direção ao outro, até se dissolverem
em outro, e seguirem em direção ao mar
Logo, tudo abaixo se
transforma em escuridão. É a Floresta Amazônica, de quem tenho medo. Da estrada
do avião, não deu pra ver queimadas. Só se percebe que dentro daquela vastidão
há segredos insondáveis. Nenhuma clareira, nenhuma alteração de paisagem. Um
verde-escuro fechado pra dentro de si mesmo, tentando se proteger de tudo
quanto possa lhe ameaçar, porque ao mesmo tempo que é grandioso, é muito
frágil. Em algum momento, pensei ter visto uma minúscula clareira, uma ferida
cor de terra na pele verde-musgo. Vi um pontinho cor de palha e logo sonhei ter
avistado uma aldeia indígena.
Os igarapés fazem caminho de
rato na floresta. Por alguma razão geográfica, geológica e geodésica, eles andam
em curvas sinuosas, como rabisco de criança aprendendo a escrever.
Quando surgem os grandes rios,
a floresta perde a sisudez misteriosa, fica leve e fluida, a poética fluidez de
que me falou Graça Ramos, jornalista, crítica de arte e igualmente apaixonada
por esse pedaço de mundo. Não há quem não se apaixone, a menos que não tenha
alma, e muitos não a têm.
As árvores amazônicas estão
para as árvores do Cerrado como os leões estão para os gatos. A exuberância de
uns versus a graciosidade constrita de outros
Na sexta-feira (04/10/2019),
pego a minha rede e me misturo aos demais passageiros no convés de um barco que
nos levará até São Gabriel da Cachoeira, a última escala da subida do Rio
Negro, até perto da divisa do Brasil com a Colômbia e a Venezuela. Desde que me
dei conta da geografia do lugar onde nasci, e já faz bastante tempo, sonho com
esta viagem. Serão três dias, 850 km, rio acima. Portanto, devo chegar segunda
(07/10/2019).
São Gabriel é a uma aldeia
urbana, um aglomerado ecumênico de povos originais. Mais de 70% da população é
indígena, mistura de várias etnias. O mundo, de algum modo, começa em São
Gabriel, ou recomeça.
Por Conceição Freitas – Foto:
Istock - Metrópoles
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CRÔNICA