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Desembargadora Maria Ivatônia defende busca por justiça em questões raciais


Amor pelos estudos e busca pela justiça. Para a primeira desembargadora negra do DF, a tocantinense Maria Ivatônia, negros bem-sucedidos precisam mostrar que vencer é possível

*Por Ana Maria Campos 

"A política de cotas é fundamental. Se você é de uma família que não estudou em escola boa e vai prestar vestibular, qual é a sua chance? Zero"

Maria Ivatônia Barbosa dos Santos poderia ser um exemplo de que é possível vencer desafios para chegar longe na carreira sem se beneficiar de cotas. A primeira desembargadora negra do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) tornou-se magistrada e ascendeu sem qualquer política afirmativa. Aos 5 anos, “fugiu para a escola”, como gosta de dizer. Foi alfabetizada em dois meses, sempre se destacou como a aluna mais nova da turma e ostentava um boletim com notas excelentes. Aos 16 anos, prestou vestibular. Aos 21, formou-se em direito. Passou em primeiro lugar no concurso para delegada da Polícia Civil de Goiás. Quatro anos depois, em maio de 1993, ingressou na magistratura do Distrito Federal.

Hoje, aos 57 anos, é celebridade na cidade em que nasceu, Arraias, estado de Tocantins. Na última terça-feira, quando foi promovida a desembargadora, Maria Ivatônia entrou para o rol dos negros mais ilustres do planeta em cartaz produzido pelas crianças da escola onde estudou, ombreando com Nelson Mandela, Barack Obama, Bob Marley, Pelé e Zumbi dos Palmares. A singela homenagem foi exibida aos colegas com orgulho na primeira sessão da 5ª Turma Cível, da qual participou ontem pela primeira vez depois de ser escolhida, por unanimidade, pelo Pleno do Tribunal de Justiça do DF para a vaga aberta com a aposentadoria do desembargador Marco Antônio da Silva Lemos.
Durante a primeira sessão, Ivatônia ouviu de um colega, o desembargador Ângelo Passarelli, um suposto elogio: “Nunca a vi como uma mulher negra. Olho para a senhora e não vejo uma negra, não”. Querida no TJDFT e entre advogados, delegados e promotores de Justiça, Ivatônia tem vários amigos na magistratura. É o caso do presidente da Associação dos Magistrados de Brasília, Fábio Esteves, um dos poucos negros nas varas de justiça brasileiras. O Censo do Poder Judiciário de 2018, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostrou que apenas 18% dos magistrados do país se declaram negros.

Entre as referências de Ivatônia, estão desembargadoras como Carmelita Brasil, Sandra de Santis e Ana Maria Amarante, além de celebridades como a ex-primeira-dama dos Estados Unidos Michelle Obama. “Eu não gosto de aparecer. Mas Michelle Obama disse que nós, negros, não podemos nos dar ao luxo de querer ter a vida tão discreta, tão afastada de holofotes como a gente prefere, porque a gente precisa que nossos irmãos de cor, como ela diz no livro (Becoming), olhem para a gente e digam: é possível.”

O pai, Antônio Gentil, professor e um sábio na educação dos filhos, também é um dos ídolos. Suas lições além das salas de aula nunca foram esquecidas. Aos 8 anos, adiantada na escola, a menina passou a se considerar adolescente. Queria viver as rebeldias das colegas de 13 ou 14 anos e decidiu deixar as tarefas de lado. O boletim marcou a diferença de comportamento. Ao perceber a modificação, o pai chegou em casa com uma “surpresa” para a filha, uma enxada embrulhada em papel de presente. “Aqui nesta casa, quem não estuda trabalha”, disse. Assim, as notas voltaram a subir.

Apesar do mérito pessoal, Ivatônia é defensora de políticas afirmativas que abram possibilidades para negros. “A política de cotas é fundamental. Se você é de uma família que não estudou em escola boa e vai prestar vestibular, qual é a sua chance? Zero”, afirma. “Pode esquecer. É por isso que, mesmo depois de 2000, a porcentagem de 2% de negros (na magistratura) não se alterou. Não é uma questão racista do tribunal de não deixar passar negros. Que isso fique muito claro. É porque os negros não chegam a esse tribunal com conhecimento necessário para disputar com os meninos que, graças a Deus, tiveram estudo”, avalia. “Então, é preciso haver essas ações afirmativas, para diminuir essas diferenças”, acrescenta. “Até hoje, o número de negros no tribunal não chega aos dedos de uma mão”, lamenta.

Preconceito: Maria Ivatônia narra passagens de discriminações que viveu, inclusive no próprio Tribunal por parte de servidores. Certa vez, a juíza foi barrada por um segurança no corredor de autoridades por onde passaria o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski. Mas Ivatônia não o denunciou. “Ele também era negro. Pensei: vou reclamar dele, abrir um processo administrativo? Ele vai ser demitido. Vai ter mais filhotes negros sem escolas. É mais um para dar problema… É melhor esquecer a cara do segurança”, disse. No Rio de Janeiro, ela viu um amigo branco e loiro ser recebido com deferência em um hotel de luxo, enquanto era tratada com desconfiança. Já ouviu também que era “negra de alma branca”.

Graduada em direito pela Universidade Católica de Goiás (UCG), a magistrada é pós-graduada em direito constitucional eleitoral pela Universidade de Brasília (UnB), em direito penal e direito administrativo pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e em direito penal, direito processual penal e direito constitucional pela Universidade Católica de Goiás (UCG). Estudou vários idiomas, como inglês, espanhol, francês, alemão e italiano. E brinca que, muitas vezes, prefere entrar num hotel chique falando outra língua, para não ser destratada. “Assim vão pensar que sou uma americana rica”, diz, com bom humor.

Com um companheiro há 17 anos, a desembargadora optou por não ter filhos biológicos. Primeira de uma prole de sete irmãos, ela preferiu cuidar da família e de amigos. Adotou de coração dois jovens, que são como filhos. Um deles é uma servidora de sua equipe que tem ananismo. “Ela é a minha filhinha. É o tempero do nosso gabinete”, conta.

Como juíza, atuou na 2ª Vara de Entorpecentes e Contravenções Penais. Foi titular da Auditoria Militar e da 2ª Vara Criminal de Taguatinga; diretora do Fórum de Taguatinga e do Fórum Desembargador José Júlio Leal Fagundes; e coordenadora da Central de Guarda de Objetos de Crime (CEGOC). Apesar de ter lidado com muitos processos penais envolvendo policiais militares, ela admira a corporação. “Temos a melhor Polícia Militar do país. Nossa Polícia Civil também é muito técnica, de muita qualidade”, avalia.

É na meditação, no tai chi chuan e na ioga que Ivatônia se desestressa. Ela também gosta de corrida, mas, pelo bem da saúde das articulações, adotou as caminhadas como atividade física. “Somos um receptáculo de muitas crises”, afirma, referindo-se aos motivos para trabalhar a sanidade mental. No Judiciário, também busca equilíbrio. “Nenhum juiz é super-homem. Nenhuma juíza é supermulher. Somos pessoas que trabalham pela justiça e pelo bem”, acredita.
Especial: Para marcar o Mês da Consciência Negra, a série Histórias de consciência é publicada ao longo de novembro e presta homenagem a mulheres e homens negros que ajudam a construir uma Brasília justa, tolerante e plural. Todos os perfis deste especial e outras matérias sobre o tema podem ser lidos no site: https://bit.ly/347WedR,

(*) Ana Maria Campos - Fotos: Arquivo Pessoal -   Vinicius Cardoso/Esp. CB/D.A Press - Correio Braziliense



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