O
Dpvat e a guerra no trânsito
*Por
Ibaneis Rocha
Em
meio às reações em torno da medida provisória recém-editada pelo governo
federal, extinguindo o seguro obrigatório dos veículos automotores, conhecido
pela sigla Dpvat, cumpre-se registrar o que se deixou de dizer ou não foi bem
explicado pelos seus autores acerca das consequências sobre uma população
desassistida. Por melhores que tenham sido as intenções, entre as quais
corrigir distorções existentes no sistema, seus efeitos são devastadores nas
duas pontas do problema.
De um lado, retira do Sistema
Único de Saúde (SUS) uma de suas principais fontes de financiamento. Tem-se a
impressão de que não houve combinação prévia com o sistema ou, se houve,
substimaram-se os números. O Dpvat repassou ao SUS em torno de R$ 33 bilhões
nos últimos 10 anos, nada desprezível quando sabemos que o setor vive sob
constante pressão, para dizer o mínimo, insuportável.
Somos um país arraigado de
procedimentos que atrapalham a vida das pessoas, isso é fato. Daí porque
medidas, quando se mostram desburocratizantes e ainda por cima causam, à
primeira vista, um efeito moralizado, são sempre bem-vindas. Porém, o que temos
nesta MP vai além de um simples freio de arrumação.
É que, na outra ponta, está um
contingente enorme de pessoas vítimas de uma guerra diariamente travada no
trânsito — verdadeira tragédia. Essa guerra contabilizou mais de 700 mil mortes
no Brasil nos últimos 20 anos, segundo estimativas do próprio governo, numa
escala que parece indiferente às inúmeras campanhas educativas. Os números são
assustadores.
Um levantamento feito pelo SUS
apontou que, de 1988 a 2018, foram realizados 2,8 milhões de procedimentos
médicos relacionados ao trânsito. E, de acordo com o Conselho Federal de
Medicina, esses acidentes geraram mais de 160 mil internações por ano. Uma média
de 20 pessoas por hora dão entrada nas emergências dos hospitais país afora.
Além de vidas interrompidas, os sobreviventes, muitos dos quais mutilados para
o resto de sua existência, são cidadãs e cidadãos de baixa renda que dependem
de algum tipo de ajuda. É aqui que entra o DPVAT.
Por ser um seguro — não um imposto
ou contribuição — o Dpvat, muitas vezes, significa para o pobre a única forma
de escapar da indigência. Pense nos milhares — na verdade, milhões — de
motoqueiros que circulam por aí, vulneráveis a cada curva. Estima-se que o
número desse tipo de transporte é maior do que o de carros em 45% das cidades.
Brasília, por exemplo, está em sexto lugar no ranking, com uma frota de quase
200 mil motos, superada por São Paulo, Rio, Fortaleza, Goiânia e Belo
Horizonte.
Vem daí outra estatística sombria:
o número de inválidos por acidentes de motos superou a casa de 2 milhões nos
últimos dez anos, conforme se afere do banco de dados do próprio Dpvat. E de
mortes, a barreira de 200 mil. Quase a sua totalidade, pessoas de baixa renda e
baixa escolaridade, levadas a trabalhar sob pressão, diante da necessidade de
realizarem o maior número possível de entregas em um curto intervalo de tempo.
Há, sem dúvida, um grande desafio pela frente no sentido de melhorar suas
condições de trabalho, mas estamos diante de uma realidade que as tornam as
maiores vítimas do trânsito.
Sabemos que, com o valor a
receber, a vítima não vai resolver todos os seus problemas. Mas também sabemos
a diferença que o seguro pode representar na hora de se adquirir um bem — seja
uma prótese, seja uma cadeira de rodas, seja qualquer outro equipamento
destinado a melhorar a qualidade de vida. Quem visitou uma ala de traumatizados
sabe valorizar cada pedaço do corpo que o mantém de pé ou até um simples
movimento de mãos.
Por ter provocado uma profunda
mudança na política e na sociedade brasileira, tornando-a mais vigilante e
atuante, o discurso do combate à corrupção deve se ajustar ao seu verdadeiro
fim, e não se tornar uma panaceia para resolver todos os demais problemas. Se
há desvios no Dpvat, que se investigue, que se apure e que recebam os eventuais
fraudadores as justas e devidas punições. O que não nos parece justo é que a
população pobre acabe vítima da má-conduta de uns poucos que, por nunca usarem
o seguro, simplesmente avançaram sinal.
(*) Ibaneis Rocha
- Governador do Distrito Federal - Foto/Ilustração: Blog - Google
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