test banner

Se o cinema não tivesse sido inventado, Brasília seria o cinema


Se o cinema não tivesse sido inventado, Brasília seria o cinema. Os candangos seriam os irmãos Lumiére. E a cidade, o telão semovente, contínuo, que sonha, protesta, sofre e resiste. Mesmo em dias piores. (*Por Conceição Freitas)

Brasília nasceu cenográfica. Se o cinema ainda não tivesse sido inventado, Brasília seria a cena aberta gravada nos olhos e no peito dos que aqui estavam desde o começo. As primeiras salas de projeção, nas casinhas de madeira da Cidade Livre, eram as cenas fechadas do imenso cenário que se movia em 360 graus de horizonte.

Brasília é cinema nas inacreditáveis fotos que transbordam como se não conseguissem conter em si mesmas o espanto telúrico e humano que há em cada imagem capturada. Brasília ainda era o cerrado inviolado e já se transportava do real para a película. Como se fosse A Chegada do Trem à Estação Ciotat, registro dos irmãos Lumiére que marca a invenção do cinematógrafo. A comparação é de Sérgio Moriconi, em Apontamentos Para Uma História.

As imagens do surgimento de uma cidade num deserto verde sem sombra e sem fim causaram espanto parecido ao dos primeiros espectadores do filme dos Lumiére. Era sonho e era real, era espelho e se movia. Depois do cinema e das imagens de Brasília, nunca mais deixaríamos de sonhar.

As imagens do começo de Brasília estendem as dimensões que nos fazerem conferir que a vida até é real, mas não apenas. O cineasta Frank Capra gravou mais de seis horas de imagens da cidade quando faltava pouco para ela ser inaugurada. Foi embora e prometeu a Juscelino que faria um longa-metragem sobre a nova capital do Brasil. Nunca mais se soube desses rolos de filme. Talvez eles sejam a própria cidade, filme que nunca termina.

Quando viu a cidade pela primeira vez, Paulo Emílio Salles Gomes foi tomado pelo vermelho da terra que sangrava o chão, rodopiava no ar, manchava a pele e queimava a retina. Onde não era cor de ferrugem, era verde-timidez, verde-retorcido, entremeado de troncos crispados e das flores mais delicadas que a natureza já inventou.

Brasília afogueava o olho. Ali havia algo estranho, ainda não registrado pela retina nem dos homens, nem dos bichos. O norte-americano Eugene Feldman filmou a cidade em construção, no mesmo 1959 em que Capra também o fez. Feldman capturou a imagem humana, atordoados candangos construtores de catedrais. O resultado é um filme que nunca fica velho, Brasília, Segundo Feldman, de Vladimir Carvalho, de 1979. 

Já nesse tempo, Vladimir filmava Conterrâneos Velhos de Guerra, o mais importante documentário sobre a cidade. Brasília-cinema era a Brasília dos candangos ou como pergunta a epígrafe que abre o filme:

“Quem construiu a Tebas de sete portas, Nos livros estão os nomes dos reis, Arrastaram eles os blocos de pedras? Para onde foram os pedreiros na noite em que A Muralha da China ficou pronta?” Bertolt Brecht 

Se nada tivesse dado certo, se tudo tivesse virado ruína, como previam os adversários da construção da cidade, ainda assim Brasília existiria nos quilômetros de imagens gravadas, como se o humano estivesse ocupando, pela primeira vez, a Terra.

Lucio Costa, a certa altura de seu projeto de capital, imagina uma cidade “planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo à especulação intelectual, capaz de tornar-se com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país”.

Se era assim, que assim fosse. Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira criam a Universidade de Brasília e, pouco depois, chegaram à nova capital Paulo Emílio Salles Gomes, Nelson Pereira dos Santos, Jean-Claude Bernardet, Lucila Bernardet. Se Brasília era o cinema em terra viva, os quatro eram a representação corpórea do cinema.

Brasília é a Idade da Terra, manifesto desesperado de Glauber Rocha diante dos destinos do país nos terríveis anos 1970.

Brasília é Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós.

Brasília está para o cinema como a vida está para o sonho (mesmo quando em estado de pesadelo).

Se o travo da censura e do descaso amargura e indigna os lúcidos e sensíveis de Brasília (e do país), o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro segue resistindo a tudo, como se tivesse (e tem) uma força própria, como aquela que move a Terra, o dia, as noites, os corações, as inquietações e os desejos.

(*) Por Conceição Freitas – Foto: Arquivo Público do DF - Metrópoles



Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem