Cortaram
o mapa da banquinha da 308. Cortaram meu coração. Mapa da artista gráfica Anna
Mendes amanheceu rasgado. Quem teria gosto em destruir uma obra que reproduz,
ludicamente, a cidade onde vive? (Por Conceição Freitas)
Faz
quatro anos que comprei uma banca de revista na 308 Sul e fiz dela uma lojinha
de afetos – por Brasília, pelos brasilienses, pelas coisas da cultura, da arte,
pelos nossos heróis ilustres e desconhecidos e por mim mesma que precisava
sobreviver a uma rasteira da vida.
De ontem
pra hoje, de 04/10 para 05/10, alguém rasgou o painel da fachada leste, desenho
do Plano Piloto, arte gráfica de Anna Mendes, artista que se dedica a desenhar
mapas de grandes cidades do mundo.
Preciso
dizer que Anna deu de grátis o mapa para a banquinha. Só pagamos a feitura e instalação
do painel. E que vai sangrar quando souber (contarei daqui a pouco, antes de a
crônica ser publicada). É mais fácil escrever este texto do que contar para a
Anna que rasgaram o mapa que ela fez e refez incontáveis vezes, até me
exasperar tamanho o cuidado de incluir desenhos que pudessem representar toda a
diversidade arquitetônica, humana, o cotidiano desta cidade tão única. Até
vendedor de coco, músico de rua, patinete e cachorrinho, ela desenhou.
O corte
no mapa parece ter sido feito com um estilete. O maior tem 90 cm x 44 cm de
largura; o menor, 50 cm de altura e 26 cm de largura. Algo rápido, de quem tem
pressa e medo.
Se eu
disser que cortou meu coração estarei me aproveitando de uma metáfora pronta,
física, cortante. Mas não tenho saída. Cortou meu coração.
Logo que
comprei a banca, fizemos uma reforma plástica, sem alterar um milímetro no
volume dos 23 m². A quadra é tombada e severamente vigiada pelos moradores mais
atentos, comprometidos com o que a 308 significa para o Plano Piloto. Ela é a
maquete de tudo o que Lucio Costa pretendia para todas as superquadras. E tem
paisagismo de Burle Marx.
A banca é
um estojo, uma caixinha que fecha e abre. É uma das menores, senão a menor de
todo o Plano Piloto. Logo depois da reforma, ela ficou uns três meses só na
parede branca – três fachadas alvas clamando por um pichador ou um grafiteiro
das madrugadas.
Todos os
dias, eu chegava temendo por isso. Inacreditavelmente, elas continuaram
intactas até que colocamos o painel da Gabriela Bilá, arquiteta que fez o mapa
da SQS 308, que agora está na fachada oeste. E não foi vandalizado, pelo menos
até o instante em que escrevo.
Eu
poderia pensar que foi um dos muitos moradores de rua que transitam pela quadra
– os bancos do Burle Marx, na Igrejinha, são a morada de muitos deles. Mas, ao
contrário do que os moradores de apartamento e de casa costumam pensar, morador
de rua só quer sobreviver. Não costuma ter, até onde vi nesses quatro anos de
banca e nesses tantos anos de reportagem, nenhum gesto gratuito de violência.
Nem o ódio de classe, que eu sentiria se estivesse no lugar deles.
Dias
atrás, escrevi uma crônica sobre a palavra “comunista” – o sentido original, o
sentido de dicionário, os caçadores-coletores, nossos ancestrais comunistas
que, durante 180 mil anos, viveram sem noção de propriedade de tipo algum.
Seria um anticomunista armado de estilete? Li algumas reações repugnantes que
não amplifiquei. O desprezo é uma arma poderosa para combater a vilania na
internet.
Teria
sido um cliente maltratado? Duvido. A banquinha é muito bem-educada e tem por
compromisso tratar todos, desde o morador de rua até o cliente de carro
importado, do mesmo jeito. Teria sido alguém que anda por aí com um estilete no
bolso passando o tempo rasgando lona?
Não tenho
muito mais o que fazer a não ser escrever essa crônica e temer que o ódio
esteja se aproximando da banquinha.
Por
Conceição Freitas - Fotos: Jacqueline Lisboa - Metrópoles