test banner

O dia em que um filósofo alemão comeu a poeira de Brasília


O dia em que um filósofo alemão comeu a poeira de Brasília. O poeta João Cabral mostrou a Max Bense uma estranha cidade nascida de uma febre delirante e que ficou para sempre como inspiração do fazer.

Enquanto com Max Bense eu ia
como que sua filosofia
mineral, toda esquadrias
do metal-luz dos meios-dias,
arquitetura se fazia:
mais um edifício sem entropia,
literalmente, se construía:
um edifício filosofia.

Enquanto Max Bense a visita
e a vai dizendo, Brasília,
eu também de visita ia:
ao edifício do que ele dizia;
edifício que, todavia,
de duas formas existia:
na de edifício em que se habita
e de edifício que nos habita.

Num dia de outubro de 1961, dois homens, um brasileiro e um alemão, um poeta e um filósofo, circulam pelo Plano Piloto. João Cabral de Melo Neto cumpria as funções de anfitrião de Max Bense. Dessa tarefa, nasceu o poema acima.

O filósofo ficou fascinado pelos contrastes da alma brasileira, “a alegria e a melancolia, a natureza e a inteligência, a improvisação e o projeto, a inércia e a mobilidade”, como resumiu Ana Luíza Nobre (“Max Bense, mobilidade e inteligência brasileira”). Há no modo de pensar brasileiro, ele diz, uma liberdade que inexiste na Europa. “Saber quem ele é somente pela história é uma sentença fulminante do homem europeu sobre si mesmo”, escreve Bense. A consciência não-história dos brasileiros lhe proporciona um grau de liberdade de quem “não olha para trás, mas se mantém atenta” ao que virá.

Então com 51 anos, teórico da poesia concreta, Bense foi habitado pelo edifício-Brasília. A cidade “é um evento visual, como um cartaz”. Não é uma pintura, é uma escultura. A cidade “é a própria revogação da ideia de pintura”.

O alemão tenta apreender a nova capital até no ar que respira: “O ar de Brasília não é jamais um mero elemento da respiração, ele é também um elemento da percepção”, ele escreve. “A poeira vermelha que às vezes perpassa os seus vãos livres imprime-lhe coloração, mas nenhum cheiro”.

A cidade “exige da consciência um novo sentido para a métrica”. Dito de outro modo, a capital inventa uma nova espécie urbana, que ocupa um lugar no tempo e no espaço como os primeiros humanos ocupavam as estepes ancestrais. Somos, portanto, a pré-história da ocupação de um lugar no mundo, embora sejamos também o mais importante sítio moderno do mundo.

Max Bense viu Brasília como um poema concreto. “É fácil notar que o urbanismo da nova capital permite uma consciência poética inteiramente distinta, uma consciência que também abre espaço à poesia artificial da pureza estrutural e à concreta materialidade da palavra”.

Como se o Plano Piloto fosse um dialeto inventado com palavras-edifícios, palavras-vias, palavras-jardins. É ao mesmo tempo absurdamente racional e espantosamente irracional. Bense reconhece que a construção de Brasília se deu num “estado febril de um delírio” e prosseguiu “para sempre uma inspiração do fazer”.

Viu de tudo em Brasília: “… ministros vestidos com ternos escuros e seus motoristas de gravata, trabalhadores com camisas coloridas, burguesia de terno claro, todas as raças, pobres e ricos…”. Viu cidades-satélites, gramados geométricos, trevos, “vias que passam por cima, vias que passam por baixo”, favelas, palácios.

Depois de quatro viagens ao Brasil, na primeira metade dos anos 1960, e de contato intenso com a vanguarda brasileira, Max Bense escreveu um livro, “Inteligência brasileira – uma reflexão cartesiana”. A epígrafe é de Guimarães Rosa: “É porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando”. O livro é dedicado a Bruno Giorgi, Aloísio Magalhães e Wladimir Murtinho, três personagens fortemente ligados a Brasília.



Por Conceição Freitas - Foto: Daniel Ferreira - Metrópoles

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem