O dia em
que um filósofo alemão comeu a poeira de Brasília. O poeta João Cabral mostrou
a Max Bense uma estranha cidade nascida de uma febre delirante e que ficou para
sempre como inspiração do fazer.
Enquanto com Max Bense eu ia
como que sua filosofia
mineral, toda
esquadrias
do metal-luz dos
meios-dias,
arquitetura se fazia:
mais um edifício sem
entropia,
literalmente, se
construía:
um edifício filosofia.
Enquanto Max Bense a visita
e a vai dizendo, Brasília,
eu também de visita ia:
ao edifício do que ele
dizia;
edifício que, todavia,
de duas formas existia:
na de edifício em que
se habita
e de edifício que nos
habita.
O filósofo ficou fascinado pelos contrastes da
alma brasileira, “a alegria e a melancolia, a natureza e a inteligência, a
improvisação e o projeto, a inércia e a mobilidade”, como resumiu Ana Luíza
Nobre (“Max Bense, mobilidade e inteligência brasileira”). Há no modo de pensar
brasileiro, ele diz, uma liberdade que inexiste na Europa. “Saber quem ele é
somente pela história é uma sentença fulminante do homem europeu sobre si
mesmo”, escreve Bense. A consciência não-história dos brasileiros lhe
proporciona um grau de liberdade de quem “não olha para trás, mas se mantém
atenta” ao que virá.
Então com 51 anos, teórico da poesia concreta,
Bense foi habitado pelo edifício-Brasília. A cidade “é um evento visual, como
um cartaz”. Não é uma pintura, é uma escultura. A cidade “é a própria revogação
da ideia de pintura”.
O alemão tenta apreender a nova capital até no ar
que respira: “O ar de Brasília não é jamais um mero elemento da respiração, ele
é também um elemento da percepção”, ele escreve. “A poeira vermelha que às
vezes perpassa os seus vãos livres imprime-lhe coloração, mas nenhum cheiro”.
A cidade “exige da consciência um novo sentido
para a métrica”. Dito de outro modo, a capital inventa uma nova espécie urbana,
que ocupa um lugar no tempo e no espaço como os primeiros humanos ocupavam as
estepes ancestrais. Somos, portanto, a pré-história da ocupação de um lugar no
mundo, embora sejamos também o mais importante sítio moderno do mundo.
Max Bense viu Brasília como um poema concreto. “É
fácil notar que o urbanismo da nova capital permite uma consciência poética
inteiramente distinta, uma consciência que também abre espaço à poesia
artificial da pureza estrutural e à concreta materialidade da palavra”.
Como se o Plano Piloto fosse um dialeto inventado
com palavras-edifícios, palavras-vias, palavras-jardins. É ao mesmo tempo
absurdamente racional e espantosamente irracional. Bense reconhece que a
construção de Brasília se deu num “estado febril de um delírio” e prosseguiu
“para sempre uma inspiração do fazer”.
Viu de tudo em Brasília: “… ministros vestidos com
ternos escuros e seus motoristas de gravata, trabalhadores com camisas
coloridas, burguesia de terno claro, todas as raças, pobres e ricos…”. Viu cidades-satélites, gramados geométricos, trevos, “vias que
passam por cima, vias que passam por baixo”, favelas, palácios.
Depois de quatro viagens ao Brasil, na primeira
metade dos anos 1960, e de contato intenso com a vanguarda brasileira, Max
Bense escreveu um livro, “Inteligência brasileira – uma reflexão cartesiana”. A epígrafe é de Guimarães Rosa: “É porque, de certo jeito,
a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando”. O livro é
dedicado a Bruno Giorgi, Aloísio Magalhães e Wladimir Murtinho, três
personagens fortemente ligados a Brasília.
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CRÔNICA