Brasília-Valparaíso
Semanalmente um professor de
matemática deixava a faculdade acompanhado de uma amiga, professora de
português, no fim da manhã, rumo a Valparaíso (GO). O ônibus, ou era
quente porque era seca, ou era quente porque chovia. Para escapar de se molhar,
passageiros fechavam a janela e respiravam o ar viciado, por muitos pulmões
passados, aguado apenas pela porta traseira que abria em um ruído a cada
parada, com um bafo frio.
Faziam o trajeto para dar aulas de
português e matemática para crianças de um abrigo no município. E era
impossível para os dois amigos saberem o quanto sua história mudaria passados
10, 20 anos daquelas insistentes viagens. Aqueles longos trajetos, se não
definissem parte de seu caráter, ficariam marcados em suas histórias como
as bordas carcomidas de um mapa, ou como riscos antigos nas páginas de um
livro. Tatuagens impossíveis de ignorar.
As próprias viagens tinham algo de
especial. Pegavam um ônibus da Asa Norte para a Rodoviária do Plano e, lá,
outro, para Valparaíso. O coletivo seguia pelo Eixo L Sul, coletando,
principalmente, estudantes do turno da manhã. Alunos ainda mais comprometidos
com o vai e vem diário. Saíam cedo de casa, em Goiás, para assistir às aulas no
DF. A mescla de uniformes, colegas, amigos rindo, falando alto, inundavam o
veículo de um aroma bucólico.
Era o cheiro de saudade das aulas,
provas, trabalhos em grupo e do descompromisso estudantil da infância. Nos dias
em que era possível viver aquele ambiente, o calor ficava. Às vezes, os
dois amigos dormiam, liam ou se engajavam em uma conversa qualquer, que
os carregava por metade do caminho até onde o cerrado tomava conta da paisagem.
O abrigo recebia crianças tiradas
das próprias famílias pela Justiça. Pequenos Zezés sem seus bondosos pés de
laranja lima, portugas ou baianos, mas sofredores dos mesmos abusos.
Então, era investir-se de paciência, ajudá-los nos deveres de casa e
submetê-los a exercícios e explicações. Os números eram disciplina dos mais
velhos. Dois deles, Diogo* e Bruno*, arrastavam-se entre as primeiras lições de
multiplicação, reforçadas por uma série extensa de somas e subtrações. A
professora dava as primeiras aulas de alfabetização para os mais novos. Bolava
cartazes, cartas com figuras e letras variadas para ajudá-los nos primeiros
passos da leitura.
A dupla foi e voltou de
Valparaíso por incontáveis lições, enquanto a vida se encarregava de distorcer
os arredores até que o caminho também fosse outro. E eles se viram menos, e
menos, e então, nada. Dia desses, o professor de matemática sentou-se no bar e,
entre uma cerveja e outra, contou das idas, das aulas e da molecada. Sempre
dava tempo de brincar um pouquinho no fim. E o prazer de ensinar tornava os
desafios fáceis.
Mas, nesse jardim de lembranças,
cresceu uma estranha flor. Dura, espinhosa, resistente, de semente
desconhecida. De um olor que não permite que volte a lembrança sem um espeto ou
arranhão cheio de perguntas. Por onde andam esses pequenos protagonistas de
José Mauro de Vasconcelos? O que aconteceu a esses meninos que se orgulhavam de
ir bem nas aulas só para contar da conquista para o professor de reforço? O que
terá sido dessas criaturas frágeis como a rosa do Pequeno Príncipe, mas cuja
vida não se preocupou em criar uma redoma ou desenhar uma mordaça para os
carneiros ao redor?
(*Nomes fictícios em
respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente)
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CRÔNICA