Gretchen,
60 anos, rebola no Setor de Autarquia. É Carnaval! A rainha dos memes, do
rebolado, de 7 filhos, 17 maridos e 15 milhões de discos vendidos, fez Brasília
mais verdadeiramente brasileira. (*Por Conceição Freitas)
Gretchen sobe no palco dez minutos
antes do horário previsto, 21h50. Veste short jeans curto, top branco cheio de
brilho, tênis branco com plataforma de uns quatro centímetros. Os cabelos muito
longos, abaixo da cintura, muito lisos e já não mais volumosos caem às costas
sob um boné igualmente branco de aba generosa. A aba esconde parcialmente o
rosto — é o rosto o mais escondido na estrela brega do universo LGB;
Gretchen, 60 anos, corpo
sarado aparentemente sem o receituário insalubre das bombas. As coxas, grossas.
A cintura, na medida. Os peitos, também.
Gretchen tem o vigor das mulheres
trabalhadoras. Dança com firmeza, abre as pernas e os braços com a virilidade
das fêmeas contemporâneas. Rebola as ancas já não mais com a fúria dos 20 anos.
É uma mulher na plenitude dos 60 anos.
Depois da primeira música de apresentação,
comenta que está vindo do Recife e que lá as redes comentaram que o top e o
short não condizem com a idade dela.
— Pois se preparem, estou só começando!
E abre os braços como quem tem o domínio de si
mesma, do palco, do público, dos 60 anos, sete filhos, 17 maridos (formais e
informais), 15 milhões de discos vendidos.
Gretchen está na Praça dos Prazeres, no Setor de Autarquias
Norte, em palco montado ao lado da sede do Banco do Brasil. Os moradores da 202
Sul, a residencial mais próxima, bem que tentaram impedir o Carnaval na
área pública do setor gregário. Perderam.
Gretchen rebola sua vida desconcertante bem ao lado
da Brasília certinha,
das superquadras dos renques de árvores do doutor Lucio, dos pilotis limpinhos,
do silêncio de igreja e da solidão de monastério.
Gretchen é puro desconcerto. Rainha dos memes, do
rebolado e do bumbum, mãe de Thammy Miranda,
ator, homem trans (que nasceu com corpo de mulher e fez a transição hormonal e
cirúrgica).
Gretchen é uma mistura de brasis que o
Brasil-superquadra prefere ver como uma excentricidade cômica ou ridícula.
Nascida num subúrbio do Rio, criada na periferia de São Paulo, Maria Odete teve
infância difícil, o pai bebia muito.
Sula Miranda, cantora, irmã de Gretchen, contou
certa vez que o pai batia na mãe e que a menina Odete tentava protegê-la.
Quando cresceu, partia pra cima de Mário, o pai, para evitar que ele batesse na
mãe. “Ele tinha uma grande paixão por ela, mas, ao mesmo tempo, tinha esse
lado. Quando bebia, se transformava”, contou Sula sobre a relação de Gretchen
com o pai.
Gretchen repete, no palco da cidade projetada para
a perfeição:
— Se preparem, estou só começando!
Como se a ofensa ouvida no Recife ainda ecoasse
dentro dela. Era de se imaginar que Gretchen, a essa altura, depois de tantas
vidas vividas, já não se importasse mais com a grosseria moralista das redes,
mas dói. Talvez as ofensas tirem de dentro da cantora a menina Odete, que
aprendeu muito cedo a se defender e a defender os que ama.
É Carnaval, e Gretchen está bem perto do sinal da
cruz, o cruzamento dos eixos, o marco zero de uma cidade que nasceu para mudar
o modo urbano de viver. Não mudou, petrificou o bem-estar das superquadras e
deixou os demais do lado de fora. Sorte nossa que há muitas Gretchens
carnavalizando a cidade-maquete, dando a ela a vida que lhe falta, misturando
os guetos, bagunçando a perfeição, abrasileirando Brasília.
(*) Conceição Freitas - Metrópoles
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