Legislação garante punição mais
severa. Exatos cinco
anos após a criação da norma que tipifica e torna hediondo o assassinato de
mulheres no Brasil, o DF e outras unidades da Federação têm o desafio de
reduzir o número de casos. Capital ocupa o 5º lugar em ranking nacional de
mortes
A cada dia, três mulheres são
assassinadas pela condição de gênero no Brasil. A estatística começou a ser
calculada há exatos cinco anos, a partir da publicação da Lei do Feminicídio.
De 9 de março de 2015 até dezembro de 2018, foram registrados cerca de 3,7 mil
casos, segundo os dados mais atuais do Anuário Brasileiro da Segurança Pública.
O levantamento, publicado no ano passado, mostra que o Distrito Federal ocupa o
quinto lugar no ranking de mortes de mulheres classificadas nessa tipificação a
cada grupo de 100 mil pessoas do sexo feminino (veja quadro).
A alteração do Código Penal
Brasileiro para a inclusão do feminicídio deixou a punição aos agressores mais
severa e se tornou um marco no combate à violência contra a mulher. A discussão
faz parte de um calendário de lutas relacionado ao Dia Internacional da Mulher
no país e em toda a América Latina e Caribe — o Brasil foi a 16ª nação a prever
o delito em lei. Especialistas que acompanham o quadro nacional desde a criação
dessa qualificadora do crime de homicídio observam que os números são
alarmantes e apontam para a necessidade de debates sobre medidas de prevenção
da violência.
A mudança na legislação fez alusão
à Lei Maria da Penha, então vigente há três anos, mas também abrangeu os
assassinatos sem contexto de violência doméstica e familiar: aqueles motivados
pelo menosprezo ou pela discriminação à condição de mulher, ou seja, sem que
ocorra uma relação íntima prévia entre vítima e agressor. “Tornou-se uma luta
assumida das mulheres e essa conquista trouxe uma grande mudança no ponto de
vista de gênero, pois questiona o próprio patriarcado. E isso é importante,
pois a linguagem é fundamental”, avalia Eleonora Menicucci, ex-ministra da
Secretaria de Políticas para as Mulheres que coordenou, pelo governo federal, a
formulação e a aprovação da Lei do Feminicídio.
Eleonora, professora titular
sênior da Escola Paulista de Medicina no Departamento de Saúde Coletiva da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), destaca a importância da dimensão
educativa da norma, uma vez que se aumenta a pena do réu, porém lamenta o
número elevado de casos em todo o país. “Em um primeiro momento, foi uma
vitória, mas não podemos ignorar que os feminicídios aumentaram após 2016.
Acredito que isso está intrínseco ao momento adverso pelo que o país passa. Há
um incentivo ao discurso de ódio e, consequentemente, os grupos vulneráveis são
os mais atacados. Nós, mulheres, estamos sofrendo demais, e as negras, mais
ainda (representam 61% das vítimas)”, analisa.
Segundo Lourdes Maria Bandeira,
professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e
integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Mulheres (Nepem/UnB),
houve reação contra a nova tipificação, tanto de agentes de segurança e de
representantes do Poder Judiciário quanto por parte da própria sociedade.
“Contudo, percebeu-se o quão sério é o assassinato de mulheres simplesmente
pelo seu gênero”, observa.
“É preciso destacar que o
crescimento dos casos está relacionado sim ao fato de as mulheres estarem sendo
mortas cada vez mais a cada ano”, afirma a pesquisadora. De acordo com ela, a
maioria dos crimes ocorre porque a vítima decide romper a relação com o marido,
o namorado ou o ex-companheiro. “Os homens não aceitam esse término, pois a
mulher é vista como um objeto. Ele também acredita que, quando é deixado pela
companheira, não desempenhou o papel de homem. É como se a honra masculina
fosse ferida simplesmente porque a mulher decidiu dar um basta à relação, que
muitas vezes já está envolvida em um contexto de violência.”
A professora Eleonora Menicucci
completa: as mortes dessas mulheres estão relacionadas à naturalização da
violência. “O pensamento é de que se pode resolver os problemas na base da
agressão física. Isso, alinhado ao pensamento retrógrado e à situação da posse
e do porte de armas de fogo no país (as apreensões em 2018 ficaram em 30.614 e
23.055, respectivamente), é um perigo. Se há uma validação de que os problemas
são resolvidos na violência, na base do tiro, por exemplo, isso também se
aplica ao contexto doméstico”, sustenta.
Histórico de agressões: Dados do anuário produzido pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (FBSP) evidenciam a situação preocupante do Distrito Federal:
quinto lugar no ranking de feminicídios a cada grupo de 100 mil mulheres. Os
números de 2018 revelam um acréscimo de 52,3% em relação a 2017, quando a
capital federal ocupava a 10ª colocação.
O mês de fevereiro deste ano
fechou sem nenhum feminicídio na capital federal, mas, em março, um caso foi
registrado na primeira semana do mês. Em janeiro, quatro mulheres morreram
pelas mãos dos maridos ou ex-companheiros, mesmo número registrado em São Paulo
em igual período — cidade com cerca de 9 milhões de habitantes a mais que o DF.
Os dados foram disponibilizados pelas secretarias de Segurança das respectivas
unidades da Federação.
Para a professora Lourdes
Bandeira, os números mostram a dificuldade de romper o ciclo de violência. “Nós
sabemos que o feminicídio não é um crime cujo agressor decide, um dia, sem
qualquer histórico, matar a companheira. Esse homem começa a dar indícios aos
poucos. É um xingamento, um tapa que desfere contra a vítima, a violência
psicológica nefasta de diminuição dessa mulher”, esclarece.
Início do ciclo: O ciclo
da tipificação deste delito teve início em 2007, com a aprovação de leis na
Argentina, na Bolívia, no Chile, na Colômbia, na Costa Rica, em El Salvador, no
Equador, na Guatemala, em Honduras, no México, na Nicarágua, no Panamá, no
Peru, na República Dominicana e na Venezuela.
Pena mais rígida: Em um
crime de homicídio simples, o réu pode ser condenado a pena de 7 a 20 anos de
prisão. Quando o delito se torna qualificado, esse tempo varia de 12 a 30 anos.
Além disso, a pena de feminicídio pode ser aumentada em um terço se o agressor
matar a vítima durante a gestação ou três meses após o parto; se assassinar
criança ou adolescente menor de 14 anos ou mulheres maiores de 60 ou com
deficiência; e, por fim, na presença de familiares, como mãe, pai, filhos e
avós.
Busca contínua: Há muito
tempo, talvez mais de 500 anos, o Brasil é um campo de batalha entre homens e
mulheres. Os colonizadores europeus já chegaram aqui estuprando as índias e
matando nativos em geral. A cultura da violência patriarcal tornou-se ainda
mais cruel com as mulheres.
Passados mais de 500 anos, em
2015, mais exatamente em 9 de março, foi sancionada a Lei nº 13.104, que prevê
o crime de feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio.
O parágrafo segundo, do artigo 121 do Código Penal define o homicídio
qualificado, estabelecendo-se o feminicídio como um desses crimes. Sendo o
feminicídio um homicídio qualificado, foi incluído no rol dos crimes hediondos.
Como a própria palavra já diz,
feminicídio é, obviamente, o assassinato de pessoa do sexo feminino. No
entanto, para que essa conduta esteja configurada de maneira destacada e não
abrangida pelo tradicional crime de homicídio, está claro que alguma
peculiaridade esse delito contém. Não se trata de qualquer assassinato de
mulher, mas, como explicitado na lei, consiste em “matar mulher por razões da
condição de sexo feminino”.
Assim, a lei, de cuja construção
tenho orgulho de ter participado, deixa muito clara a diferença entre homicídio
de mulher e feminicídio. Em resumo, a criação da figura penal do feminicídio
veio esclarecer que uma pessoa que morreu assassinada não teria morrido nas
mesmas circunstâncias se não fosse mulher. Trata-se de escancarar a violência
de gênero e aumentar seu rigor punitivo, medida importante na intimidação do
agressor.
Com uma taxa de 4,8 homicídios a
cada 100 mil mulheres, em um grupo de 83 países, o Brasil ocupa a vergonhosa
posição de quinto pior país no ranking da violência de gênero, segundo dados da
Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2015. Em comparação com os dados
referentes aos países considerados civilizados, o Brasil tem 48 vezes mais
feminicídios do que o Reino Unido, 24 vezes mais do que a Dinamarca e 16 vezes
mais do que o Japão. Nosso país está atrás apenas de El Salvador, que ocupa o
lamentável primeiro lugar mundial de violência contra a mulher, com uma taxa de
8,9 mulheres assassinadas a cada 100 mil; da Colômbia, com 6,3, e da Guatemala,
com 6,2 (dados colhidos pelo Ipea entre os anos de 2011 e 2013 e divulgados em
2015).
Desta forma, conclui-se que, na
verdade, os maiores genocídios da história não precisaram de mísseis, pois os
homens tonam-se armas de destruição massiva em relação às mulheres.
O Brasil deu vários passos na
defesa da integridade física e psicológica da população feminina, mas as
medidas adotadas ainda não se mostraram suficientes para fazer diminuir os
índices de violência de gênero. Por essa razão, devemos continuar buscando
caminhos para alcançar a eficiência que nos possibilitará viver em uma comunidade
pacificada.
Luiza Nagib Eluf é
advogada criminalista, ex-procuradora de Justiça do Ministério Público de São
Paulo e autora de sete livros, entre eles o best-seller A paixão no banco dos
réus.
Por Sarah Peres -
Luiza Nagib Eluf -
Correio Braziliense - Fotos/Ilustração: Blog-Google
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JUSTIÇA