O novo
feminismo não constrói uma nova mulher e sim um novo mundo. O novo feminismo
está quebrando a ordem pétrea que conduziu o mundo dito civilizado ao longo da
história. (*Por Conceição Freitas)
Nasci
feminista sem saber. Desde muito menina tive de ir à luta na rua, na escola, no
mercado de trabalho.
Não sabia
que era feminista quando dizia que não ia casar virgem. Era uma ideia que havia
lido numa revista, a Cosmopolitan, que no Brasil se chamava Nova, meados dos
anos 1970. Carmen Silva, na Cláudia, também me dizia coisas que nunca havia
escutado. As revistas se ofereciam a mim, tão vivas, janelinhas de papel me
apresentando o mundo, na banca de revistas que tinha comprado com o pouco
dinheiro que o pai havia deixado com sua morte trágica.
As
mulheres pobres nascem feministas por necessidade. Não são elas as provedoras
de um terço das famílias brasileiras?
Uma das
minhas primeiras amigas de infância era operária de uma fábrica de papel em
Belém. Não tinha mais de 15 anos.
E eu, com
os mesmos 15, vendia de porta em porta livros, enciclopédias e bijous banhadas
a ouro, segundo me diziam os fornecedores.
Até então
eu era feminista por necessidade de sobrevivência e não apenas financeira.
Nos
livros e nas fotonovelas que eu lia, não havia feministas. Eram sempre mulherzinhas
fazendo crochê e esperando um marido. No máximo, heroínas traindo o marido. E o
feminismo zona sul do Rio era algo muito distante.
Nunca
pude pensar em me casar: que homem iria querer uma mulher que já vinha com
sogra e cunhado-criança? E pobre e preta?
De nada
disso eu tinha consciência. Intuía que precisava dar conta do que me cabia
fazer, e seguia às cegas.
Foi a
universidade que deu nome ao que eu fazia.
Na
faculdade, conheci as primeiras mulheres fora da ordem, as professoras e as
militantes do movimento estudantil, tão cheias de livros, tão cheias de ideias,
tão sexualmente livres.
Ainda era
a menina tosca, romântica, fora de lugar, e continuo sendo, só que agora essas
condições são parte da minha força.
O meu
primeiro feminismo foi a liberdade da luta política, a reportagem policial (sob
a qual hoje tenho graves dúvidas) e o sexo livre. E eu já achava
super-mega-demais.
Era só o
começo. A nova onda feminista, de agora, abriu em mim percepções desconhecidas.
Quer
dizer então que o incômodo de que fui vítima desde os 11/12 anos nos ônibus
indo pra escola e voltando, quer dizer que era abuso? Era crime? Quando
entendi, tive vontade de recuar no tempo e denunciar todos aqueles porcos
execráveis. Dar um murro, um chute certeiro em cada um deles.
Há alguns
anos, entrevistei uma jovem estudante de psicologia que havia sido violentada
pelo pai dos 5 aos 12 anos. Ela me disse que durante boa parte do tempo
acreditava que era assim mesmo, que todos os pais faziam aquilo com todas as
filhas. E não contava pra ninguém. Até que alguém o denunciou e ele foi preso.
Tudo pode ser naturalizado se não houver alguém pra apontar a cruel
manipulação.
O novo
feminismo, às vezes, assusta essa mulher de Atenas que ainda sou (e dela não
abro mão posto que não me violenta e me constitui).
Aos
solavancos, o novo feminismo vai desnaturalizando cláusulas pétreas: o toque
insidioso e não-autorizado no corpo, o julgamento moralista, o desprezo atávico
do homem pela mulher, desprezo que se revela com desfaçatez ou com declarada
violência ou ignóbil cinismo.
O novo
feminismo está quebrando a ordem pétrea que conduziu o mundo dito civilizado ao
longo da história.
O novo
feminismo não está construindo novas mulheres, está anunciando um novo mundo –
ainda são sinais difusos na escuridão, mas quando houver claridade virá delas,
de nós. E há, nesse novo feminismo, um afluente poderoso e imprescindível neste
país de DNA escravocrata, o feminismo negro. Mas essa é uma outra crônica, para
a qual reúno forças.
(*)
Conceição Freitas – Foto: Gui Prímola - Metrópoles
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CRÔNICA