Um ano do renascimento de Lis e
Mel. Cirurgia que separou as gêmeas nascidas unidas pelo crânio ocorreu em
27 de abril de 2019. Procedimento inédito no DF é celebrado hoje pela família e
por toda a equipe envolvida
*Por Hellen
Leite
A imagem do abraço das duas é uma
das que a mãe guarda com mais carinho. Este ano, as meninas se divertiram no
carnaval fantasiadas
Brincar, passear na rua, ir para a
escola, comer com as mãos. Esses hábitos banais na vida de qualquer criança,
têm sabor de grande vitória para as irmãs Lis e Mel. Há exatamente um ano, as
gêmeas que nasceram unidas pela cabeça entravam no centro cirúrgico do Hospital
da Criança de Brasília José de Alencar para um desafio imenso: resistir à rara
e delicada cirurgia que as separaria.
Foram mais de 20 horas de
operação, seguidas de 36 dias de internação e muita fisioterapia e, a partir
disso, é possível constatar, hoje, que essas pequenas brasilienses tiraram de
letra. Para a emoção da mãe, Camilla Neves, 26 anos. “É engraçado, porque vai
chegando esse um ano da cirurgia e, o que eu não chorei na época, eu choro
agora. Hoje, quando paro para pensar em tudo, choro de emoção. É muito
gratificante vê-las. E ver o milagre que Deus fez nas nossas vidas. Para mim,
elas são um milagre”, conta a servidora do Ministério da Saúde.
Por causa da pandemia de Covid-19,
as três têm ficado o tempo todo na casa onde moram com a mãe de Camilla, Maria
Vieira, 75 anos, em Ceilândia, e preferem não receber visitas. A conversa com o
Correio, então, ocorre pelo telefone. Quando solicitada para enviar uma imagem
que melhor represente a vida das filhas após a cirurgia, Camilla pede tempo
para pensar e, no dia seguinte, manda a foto das irmãs usando o uniforme da
escola e se abraçando, com sorrisos largos no rosto.
A jovem mãe explica a escolha.
Sabe que as meninas não estão com o cabelo arrumado e a pose não é das mais
fotogênicas. Mas a cena representa a realização do que ela sempre sonhou para
Lis e Mel: uma vida comum e repleta de amor entre irmãs, com a possibilidade de
se tocar porque se gostam, e não porque nasceram dividindo parte do crânio.
“Elas se abraçam o tempo todo”, diz Camilla, sem esconder a felicidade.
Esses abraços são uma das várias
“pequenas realizações” das meninas desde que deixaram a sala de cirurgia. Elas
reaprenderam a fazer coisas básicas — como controlar o pescoço e engatinhar — e
ganharam novas habilidades, como caminhar, falar os próprios nomes e as
primeiras palavras, e conviver com os coleguinhas de escola. Aprenderam também
a curtir a vida: amam brincar de boneca e passar os dias mais quentes na
piscininha de plástico. E como a amizade é grande demais, pedem para dormir no
mesmo berço, como fizeram nos primeiros 10 meses de vida.
Enquanto aprendem, porém, Lis e
Mel dão várias lições. “Eu achei que eu ia ensinar muito a elas, mas a cada dia
que passa são elas que me ensinam. Eu aprendi muito sendo ‘pai de menina’. Tem
sido incrível esse primeiro ano. O aprendizado é constante”, comenta o pai
delas, o supervisor comercial Rodrigo Aragão, 31 anos. Camilla revela um
sentimento parecido. “Aprendi a dar mais valor às pequenas coisas da vida.
Quando você passa por um baque muito grande, começa a ver tudo de forma mais
positiva. Por pior que seja, tenta ver o propósito daquela situação”, analisa.
Diferenças: As personalidades das gêmeas também vão ficando
cada vez mais evidentes à medida que crescem, e se destacam quando as meninas
ficam nervosas ou chateadas. Mel é alegre, risonha, simpática e agitada. Lis é
delicada, carinhosa, meiga e tímida. Mel é mais risonha, mas também mais
nervosa. Lis é mais reservada, mas também mais fácil de ser conquistada.
A agenda de Mel e Lis é concorrida
e agitada. Elas chegam cedo à creche, que fica perto de onde moram, em
Ceilândia. Antes das 7h, são recebidas pelos monitores na porta e se despedem
da mãe. Às terças e quintas, as meninas fazem aula de natação e, às quartas e
sextas, batem ponto no Programa de Educação Precoce, onde fazem atividades com
o acompanhamento de fonoaudiólogos e de fisioterapeutas.
Recuperação: Apesar de terem passado por uma cirurgia complexa e
delicada, Lis e Mel não ficaram com sequelas. A única lembrança da operação é a
cicatriz na testa das meninas. O médico que capitaneou a cirurgia de separação,
o neurocirurgião Benício Oton, comemora a recuperação das pequenas e explica
que as gêmeas têm o desenvolvimento cognitivo normal para crianças da idade
delas.
“Elas estão se recuperando muito
bem. Sem falar que começaram a ganhar mais habilidades depois que foram
separadas e começaram a ter estimulação. Lis e Mel têm dois nascimentos, o de
verdade e o da separação. Esperamos que elas aprendam coisas novas a cada dia”,
comemora.
O neurocirurgião lembra que, por
causa da gravidade do caso, as meninas corriam riscos de ficar com lesões
cerebrais importantes. “Outras crianças não têm a mesma recuperação que elas
tiveram. Elas são abençoadas. Comemoramos todos juntos, tem muita gente para
celebrar esse um ano de cirurgia de separação com a Lis e a Mel”, diz o médico.
Atualmente, 90% dos médicos que
acompanham as gêmeas desde o nascimento já assinaram a alta das meninas, mas
elas ainda não estão liberadas de todos os cuidados após a operação. Por
enquanto, ainda têm rotina de consultas a cada seis meses com as especialidades
de neurocirurgia, gastroenterologia e dermatologia, mas não há previsão de que
façam novas cirurgias. “Achamos que não é o momento de cirurgia plástica e
também não sabemos se vamos fazer futuramente”, diz Camilla.
"Eu achei que eu
ia ensinar muito a elas, mas a cada dia que passa são elas que me ensinam” (Rodrigo Aragão, pai) - "Para mim, elas são um milagre” (Camilla Neves, mãe)
Memória- Nascimento: Camilla Vieira
e Rodrigo Aragão descobriram que seriam pais de gêmeas siamesas na 10ª semana
de gestação. Provavelmente, um dos casos mais precoces do mundo de detecção de
gêmeos siameses craniópagos. As meninas nasceram em 1º de junho de 2018 e
passaram 10 meses conectadas pelo lóbulo frontal direito dos crânios, uma
ligação que poderia ser rompida sem comprometer o desenvolvimento delas a longo
prazo.
Separação: Após meses de estudos, inclusive com o auxílio de
médicos norte-americanos do Children´s Hospital at Monte Fiore, em Nova York, a
cirurgia de separação das gêmeas ocorreu em 27 de abril de 2019. Dividido em 36
etapas, o procedimento começou às 6h30 de sábado e só terminou às 2h30 do
domingo. Mais de 50 profissionais participaram da cirurgia, toda feita pelo
SUS, no Hospital da Criança de Brasília José de Alencar. Foi o primeiro
procedimento do tipo no Distrito Federal e o terceiro no Brasil.
Reencontro: Após o sucesso da cirurgia, Lis acordou primeiro,
Mel, depois, mas saiu primeiro da unidade de terapia intensiva (UTI). As duas
se reencontraram em 21 de maio, 22 dias após separadas. As meninas comemoraram
o aniversário de um ano no hospital, em 1º de junho de 2019, com direito a
festa junina, bolo, doces e brinquedos infláveis (foto). Dois dias depois, em 3
de junho, Mel e Lis receberam alta médica para os cuidados pós-operatórios em
casa.
Fé e superação: A história das meninas emocionou muita gente. Mas,
para a família das gêmeas, elas também despertaram um sentimento maior: a fé.
“Foi muito bonito ver tantas pessoas torcendo pela saúde das nossas pequenas,
ver que se sensibilizaram, fizeram correntes de oração, pediram a Deus a
melhora delas. Eu todos os dias lia os comentários no Instagram das páginas que
tinham reportagens delas e aquilo me deixava emocionado e muito feliz, ver que
a história delas pôde tocar no coração das pessoas e mostrar o lado bom, de
compaixão que todos temos”, comenta Rodrigo.
Gerar esperança para quem enfrenta
momentos difíceis, inclusive, foi um dos motivos que fizeram Camilla e Rodrigo
se abrirem à divulgação da história de Lis e Mel. “Nós não queríamos falar
sobre a história, mas decidimos nos abrir após eu me sentir amparada pela
história das gêmeas siamesas de Fortaleza, Maria Ysabelle e Maria Ysadora. Às
vezes, as pessoas estão perdidas, sem esperança e precisam apenas de uma
história como esta para perceber que nada está perdido”, revela Camilla.
A mãe das meninas diz que um ano
depois da divulgação do caso, a família das gêmeas ainda recebe mensagens
carinhosas de quem foi tocado pela história. “Teve uma mensagem que mexeu muito
comigo. Uma mãe me contou que o filho também estava esperando cirurgia de neuro
no Hospital da Criança, mas ela já estava sem fé. Foi a história da Lis e da
Mel que deu forças pra ela lutar a batalha do filho dela, isso me deixou muito
feliz.”
Frequentemente as pessoas
reconhecem as gêmeas na rua, no shopping e até em bloquinhos de carnaval.
“Muita gente aborda a gente na rua quando estamos com elas. Querem saber da
recuperação, saber como elas estão, querem tirar fotos. Nós deixamos. Nem
sempre elas querem, mas na maioria das vezes dá certo”, conta Camilla,
sorrindo. (HL)
(*)
Hellen Leite – Fotos: Arquivo pessoal – Lucia Vânia – Humberto Souza – Maria
Clara Oliveira – Correio Braziliense
Tags
HISTÓRIAS