Ontem, um sonho; hoje, pesadelo
*Por Circe Cunha e Mamfil
Entre 1955 e 1960, durante a construção da capital, as visitas periódicas do então presidente Juscelino Kubitschek ao imenso canteiro de obras em que se transformara Brasília, viraram não apenas uma rotina, mas, sobretudo, um deleite que fazia o então chefe da nação esquecer por uns momentos as agruras daqueles tempos politicamente conturbados. O zelo com que JK cuidava do megaprojeto de transferência da capital para o interior do Brasil representou, para aqueles que participaram dessa dificílima epopeia moderna, um incentivo de tamanhas proporções, que abrandava misteriosamente os tormentos e as dificuldades envolvidas nessa empreitada.
Entusiasmo e otimismo irradiavam
daquela figura esguia que várias vezes na semana, ao fim do expediente, deixava
o Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, e rumava, por quase quatro horas, a
bordo de um avião turbo hélice Viscount para Brasília. Durante a madrugada,
inspecionava as principais obras, cercadas de seus principais auxiliares,
regressando ao Rio, muitas vezes no alvorecer.
Sem essa rotina, imposta pela seriedade com que encarava essa construção, dizem
alguns dos seus auxiliares que testemunharam esse esforço, não seria possível a
construção de uma nova capital, no interior ermo do Brasil num prazo de apenas
mil dias. Esse amor pela nova capital chegou a inspirar alguns administradores
que depois vieram a cuidar da capital. O amor por uma obra única no mundo, por
seu modernismo revolucionário e que denotava para todos a capacidade
empreendedora dos brasileiros, viria a perder muito de seu vigor com o passar
dos anos.
A chamada Revolução, ou Golpe de
1964, quebrara não apenas a oportunidade de regresso de JK ao poder, em que
poderia dar prosseguimento ao ousado projeto de governo “50 anos em 5”, mas
serviu para esfriar muito do ânimo necessário para movimentar o restante das
obras necessárias para a conclusão da nova capital. A essa interrupção brusca,
e que viria a transformar os planos e muito do urbanismo da nova capital,
conforme idealizada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, outro acidente de
percurso viria a modificar os planos iniciais pensados para Brasília: a chamada
maioridade política, proposta por uma união suspeita de políticos e empresários
locais no início dos anos 1980, faria a capital mudar de rumos, atraindo para a
cidade o que havia de mais nefasto em termos de ocupação de solo e de
administração e conservação da cidade.
Seguidas eleições de governadores,
muitos deles totalmente alheios à cidade, sua origem e necessidade, cuidou para
uma desfiguração paulatina do desenho urbano da cidade, transformando Brasília
em apenas mais um modelo caótico de cidade brasileira. Esse verdadeiro processo
de desurbanização, com cada novo governador, juntamente com cada nova
composição de deputados distritais, cuidou para que Brasília chegasse hoje ao
ponto em que está. Não fossem alguns impedimentos trazidos pelo tombamento da
Unesco, que fez de Brasília patrimônio cultural da humanidade em 1987, o
desenho inovador da capital estaria completamente desfigurado.
A transformação de terras
públicas, inclusive aquelas inscritas como área de preservação ambiental, em
moeda de trocas políticas, dentro do princípio maroto “um lote, um voto” e
outras maracutaias feitas para beneficiar grandes grupos empresariais,
completaria o quadro de agressões que levaria a capital a experimentar
precocemente a decadência de muitas áreas, inclusive aquelas que anteriormente
eram tidas como as mais valorizadas e promissoras.
A frase que foi pronunciada: “Queremos, em uma palavra, a paz da justiça, a paz da liberdade, a paz do desenvolvimento.” (Juscelino Kubitschek, ex-presidente da República)
(*) Circe Cunha e Mamfil - Coluna "Visto, lido e ouvido"
- Ari Cunha - Charge: avozdocidadao.com.br - Foto: veja.com/VEJA -
Correio Braziliense