Sopro de alegria
Uma das coisas das quais mais senti falta no
isolamento social imposto pela pandemia foi de ir até o Espaço Renato Russo da
508 Sul para de assistir peças de teatro. Certa noite, dirigi-me à bilheteria e
pedi um ingresso. A funcionária perguntou: “Para qual peça? Tem quatro peças em
cartaz.”
As artes presenciais foram as que mais sofreram com
a pandemia. Elas são, simultaneamente, as mais intensas e as mais fugazes.
Ficam na memória como a matéria evanescente dos sonhos, que nos deixa na dúvida
se vivemos ou não aquela experiência.
Umas das peças de teatro que mais me tocaram, nos últimos tempos, foi a remontagem de Os saltimbancos, dirigida por Hugo Rodas, com a Agrupação Amacaca, no Teatro Galpão. Levei os meus dois netos, Judá, de 3 anos, e Aurora, de 7, para assistir. É um privilégio nosso sermos contemporâneos de um artista que se tornou um dos maiores diretores de teatro do país ao fazer de Brasília o palco de suas experimentações.
Ele é nosso bruxo emérito do teatro. Utiliza Os
saltimbancos para propor um ritual de comunhão para todas as idades. Na fábula,
a trupe de bichos músicos se une para desbancar os barões donos da cidade, do
país, das florestas e da liberdade. Hugo construiu um espetáculo para nos
lembrar que somos animais alegres, animais imaginosos, animais brincantes. Não
importa o que acontecer, todos juntos somos fortes.
Não bebo nada de álcool, mas, depois de assistir a
Saltimbancos, confesso que saí do teatro meio alterado, com a sensação de ter
tomado um bom vinho. É o sopro dionisíaco do nosso bruxo do teatro. Sempre
monta espetáculos experimentais e essenciais para cada momento, que transmitem
jatos de dramaticidade, de energia, de alegria e de humor.
Fiquei com saudades dos teatrinhos da 508 Sul e de
Saltimbancos, mas, insolitamente, nos últimos dias, vi a peça se desdobrar e se
estender para dentro do carro. É que conseguimos um CD com as canções do
espetáculo e, toda vez que saímos com Judá e Aurora, eles pedem para tocar.
Então, o teatro e a festa se instalam no carro.
E não é apenas o êxtase da escuta. Aurora puxa o
coro, todos têm de cantar e coreografar, nos limites estreitos do carro e do
cinto de segurança. Aurora parece uma reencarnação de Emília, a boneca rebelde
do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Fazia muitas atividades antes
da pandemia e ficou indignada com o coronavírus: “Este vírus é um idiota!”,
disparou. Ponderei a ela: “Existem outras pessoas mais idiotas”. Ela quis
saber: “Quem?”. Repliquei: “Não me faça perguntas difíceis”.
Os partidos políticos não nos representam;
representam apenas os próprios interesses pessoais mesquinhos e baixos de seus
dirigentes e integrantes. Nós precisamos nos representar a nós mesmos.
Conquistar voz para dizer que queremos vacina, saúde, democracia, preservação das
nossas florestas, respeito ao nosso voto e ao Brasil.
Estamos fracos porque a máquina da mentira e os
políticos traíras nos desunem. Os Saltimbancos é uma fábula para todas as
idades. Mostra que, não importa o que acontecer, todos juntos somos fortes. A
arte é oxigênio para quem vive tempos tão difíceis. Em meio ao período mais
distópico da história do Brasil e de Brasília, aquele canto dos animais
saltimbancos puxado pelas crianças no carro é um sopro de alegria e de utopia.
Severino Francisco – Jornalista, Colunista do Correio Braziliense – Fotos/Ilustração: Blog- Google.