Deixa a Aruc batucar
No fim de 2015, um deputado
distrital apresentou a proposta disparatada de vender o terreno onde funciona a
Aruc, sob a falsa alegação de que permanecia ocioso. Pois bem, a Aruc,
Associação Recreativa Unidos do Cruzeiro, está sob nova ameaça.
Um morador do bairro entrou com
uma ação contra a Aruc baseada na Lei do Silêncio, o que coloca em risco as
atividades da agremiação. Não entrarei em minúcias jurídicas e técnicas da
pendência. Mas não me furtarei a dar um depoimento como observador da cena
cultural brasiliense desde a década de 1970.
Durante as décadas de 1970, 1980 e
1990, a Escola da Noite revelou e lapidou muitos talentos musicais na cidade,
alguns que ganharam renome nacional ou até internacional. Poderia citar Cássia
Éller, Jorge Hélder ou Rosa Passos. Mas os exageros da chamada Lei do Silêncio
inviabilizaram a atividade musical noturna.
Música não pode ser confundida com
barulho. Jorge Hélder acompanha Chico Buarque. Rosa Passos decolou uma carreira
internacional, mora em Brasília, mas toca nos principais palcos do mundo.
Enquanto a classe política nos envergonha, eles são embaixadores de Brasília.
É a mesma interpretação
intransigente da Lei do Silêncio que, agora, ameaça a Aruc. Não sou
carnavalesco, mas acompanho a Aruc desde fins de 1970 e posso assegurar que ela
é uma agremiação não apenas cultural, mas também comunitária e cidadã. Quando o
Cruzeiro ainda não tinha administração, era a Aruc que reivindicava melhorias
para o bairro com os governantes.
Sagrou-se campeã em 31 edições do carnaval
brasiliense. Mantém laços afetivos não apenas com o Cruzeiro, mas com Brasília
de uma maneira ampla. Em 1977, com o ensaio de redemocratização do país, um
grupo de jornalistas resolveu criar a Sociedade Armorial Patafísica Rusticana
Pacotão. “Vamos para a Aruc que o Sabino nos apoia”. Sabino, o então diretor da
agremiação, adorou a ideia e colocou a bateria da Aruc a serviço do primeiro
desfile anárquico do Pacotão, na contramão das avenidas W3 Sul e W3 Norte.
O meu amigo Reynaldo Jardim, um
dos mais importantes jornalistas da história da imprensa brasileira,
submeteu-se a uma delicada cirurgia, reuniu a família e avisou: “Tudo vai dar
certo. Mas, se não der, chamem a bateria da Aruc e façam uma festa de arromba”.
Reynaldo morreu, mas, no sarau de sétimo dia, a bateria da escola apareceu no
Museu da República para abrir o caminho do poeta rumo aos céus com uma batucada
memorável e inesquecível: “Quero morrer nunca batucada de bamba/Na cadência
bonita do samba”.
Em uma cidade segregadora, a roda
democrática de percussão feminina do grupo Batalá, que ensaia na quadra da
Aruc, consegue a proeza de reunir mulheres de 18 a 60 anos, brancas, negras,
loiras e mulatas; elas são de Santa Maria, de Sobradinho, de Planaltina, do
Plano Piloto, do Lago Sul e do Park Way.
Não é por acaso que a Aruc
conquistou o título de Patrimônio Cultural Imaterial do DF em 2009. A área que
ocupa no Cruzeiro fica em um local reservado a clubes. É a segunda reclamação
de vizinho que a Aruc recebe em 46 anos. Como bem disse, em carta aberta,
Moacyr , o Moa, ex-presidente da Aruc, já imaginaram se os moradores dos
prédios da rua Clara Nunes, em Madureira, no Rio de Janeiro, onde fica a sede
da Portela, quisesse impedir os ensaios da escola?
Toda essa pendenga pode ser
resolvida com uma boa e democrática conversa. O chão da Aruc é sagrado. Por lá,
pisaram Cartola, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Clara Nunes, Xangô da
Mangueira e Zé Keti. Batizada por esses mestres, a semente do samba só poderia
germinar e irradiar. A Aruc é a alma do Cruzeiro. Deixa a Aruc cantar, deixa a
Aruc batucar.
Severino Francisco – Jornalista, colunista do Correio Braziliense – fotos/Ilustração: Blog-Google.