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O fantasma da Constituição de 1937

O fantasma da Constituição de 1937


A Constituição de 1988, no seu artigo 53, diz que os deputados e senadores não podem ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, e somente podem ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Na hipótese de um parlamentar ser suspeito de um crime e se o Supremo julga que há evidências suficientes para solicitar sua prisão, o primeiro passo deve ser pedir autorização à casa parlamentar do congressista. A Constituição não autoriza prender deputado ou senador sem prévia autorização dos seus pares, e ignorar isso pode ser perigoso.

 

No triste episódio do deputado Daniel Silveira, que desfiou impropérios e grosserias contra os ministros da Suprema Corte e o próprio Tribunal, o que aconteceu foi exatamente o contrário. Em vez de seguir o rito previsto no artigo 53, o Supremo prendeu primeiro e perguntou depois. A Câmara acabou concordando com a prisão por 364 votos, um placar que não deixa dúvidas do repúdio provocado pela atitude de Daniel Silveira.

 

Entretanto, por mais que não concordemos com a forma e o conteúdo escolhidos pelo deputado para expressar seu descontentamento com a Suprema Corte e seus membros, do ponto de vista da letra da Constituição ele não cometeu crime inafiançável e nem foi preso em flagrante por delito dessa natureza.

 

A imunidade parlamentar está prevista nas Constituições de 1824 e de 1891, respectivamente primeira do Império e primeira da República, com praticamente o mesmo texto: parlamentares são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício das suas funções. O mesmo preceito foi incluído nas constituições de 1934 e 1946. Na atual constituição ficou expresso que os deputados e senadores são invioláveis civil e penalmente por suas palavras, opiniões e votos.

 

Apenas nas constituições vigentes em períodos ditatoriais e autoritários, como as de 1937 e 1967, as imunidades dos parlamentares não valeram de verdade. Na Constituição de 1937, a justificativa para a quebra da imunidade era a seguinte: “Em caso de manifestação contrária à existência ou independência da Nação ou incitamento à subversão violenta da ordem política ou social, pode qualquer das Câmaras, por maioria de votos, declarar vago o lugar do Deputado ou membro do Conselho Federal, autor da manifestação ou incitamento”. E a de 1967 dizia que os deputados somente perderiam a inviolabilidade se atentassem contra a Lei de Segurança Nacional.

 

Vem desde o Império, sendo replicado em todas as nossas constituições democráticas, o preceito da inviolabilidade. No caso do deputado Daniel Silveira, mesmo diante de todas essas evidências, o Supremo decidiu agir e, em seguida, ratificar por 11 votos a zero a decisão de prender um deputado que exagerou no palavrório adotando linguagem de calão, numa atitude que, claramente, fere o decoro, mas não fere a Constituição. A falta de decoro é justificativa para a cassação de deputados e senadores, como já aconteceu em diversos casos. Mas esse é um tipo de punição que somente pode ser aplicada pela Casa à qual pertence o parlamentar.

 

Não há dúvida de que a atitude do deputado foi extremamente repugnante, em especial, a forma como ele verbalizou suas críticas e acusações. Mas, mesmo incomodando e causando repúdio, não há amparo legal na decisão de prender primeiro e perguntar depois, exatamente como dispunha a Constituição do Estado Novo, que, de forma autoritária, liquidava, no seu artigo 43, as prerrogativas do deputado ou senador que cometesse “difamação, calúnia, injúria, ultraje à moral pública ou provocação pública ao crime”. O correto seria o Supremo dar o exemplo e agir de acordo com a Constituição de 1988, ao invés de ressuscitar o fantasma de 1937.

 

Ao manter a decisão do Supremo por larga margem de votos, a Câmara deixou claro que não criaria uma crise institucional, o que demonstrou maturidade e responsabilidade. Mas, na sequência, caminhou para dar uma solução definitiva para essa questão por meio de uma emenda, a PEC da Imunidade. Os deputados estão sinalizando que as regras devem ser claras e inequívocas, a fim de que nossa cultura constitucional, que prevalece desde o Império, se mantenha em vigor. A proposta ainda será debatida, emendada, terá trechos suprimidos, como é normal no processo legislativo. Porém, o mais importante é que estamos diante da possibilidade de pacificar essa questão de uma vez por todas.


                        Everardo Gueiros Advogado – Fotos/Ilustração: Blog-Google.



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