Luta por cidadania há mais de 133
anos. O 13 de maio de 1888 marca o fim, formal, da escravidão no Brasil.
No entanto, a data não é motivo para comemoração. Apesar da liberdade, a busca
por direitos e por uma vida digna perdura, mesmo após a abolição
Para o professor Nelson Inocêncio, não há garantia de que o futuro dos negros no Brasil será melhor do que o presente
A historiadora Ana Flávia lembra que o movimento abolicionista começou antes de 1888
Uma luta que tem cor, raça e
endereço. Por séculos a população afro-brasileira tem buscado condições dignas
de viver em sociedade e, mesmo com alguns direitos conquistados, está longe do
ideal. Após 133 anos da abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, o
retrato que se vê dos negros no Brasil é cruel, com altos índices de violência
e desemprego. De acordo com dados da Companhia de Planejamento do Distrito
Federal (Codeplan), em 2018, dos 2.881.854 habitantes do DF, 1.659.995 se
declararam negros (57,6%). A maioria vive em regiões periféricas e de baixa
renda.
Segundo estudo da Codeplan, em média, os negros recebem 39,4% a menos do que a
população não negra. E 15,8% das mulheres negras trabalham como empregadas
domésticas para sustentar a família. Uma realidade que se reflete no
comportamento vivenciado em 1888, depois da Lei Áurea. O professor de artes e
membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade de Brasília (UNB)
Nelson Fernando Inocêncio da Silva, 59 anos, faz uma análise histórica desse
processo. “A abolição não permitiu que a população negra se tornasse cidadã. A
Lei Áurea foi uma forma de se livrar da população negra, tirando a
responsabilidade, e a deixando à margem, nas periferias e favelas. O Estado não
chega com serviço de saúde, educação e jurídico. O Estado só chega para
reprimir”, destaca.
“A abolição é a transição mais longa do Brasil. Buscamos, há mais de um século,
que a população negra participe e se torne cidadã efetivamente, com respeito a
sua identidade. Não podemos pensar em democracia sem pensar na população
negra”, ressalta Nelson Inocêncio. “Nós não temos garantia nenhuma de que o
futuro será melhor do que o presente, mas temos que arregaçar as mangas para
buscar uma condição mais justa”, afirma o professor.
Para o coordenador distrital do Movimento Negro Unificado do DF, Geovanny
Silva, 30, o regime escravocrata e a abolição foi um dos períodos mais cruéis
da história da humanidade. Na avaliação dele, houve uma falsa libertação pois
não houve política de inserção social. “Não foi dado condições de ensino,
política habitacional para que a população negra pudesse ter sua própria
moradia. A gente vê um histórico de muita discriminação, de muitos problemas
sociais que se refletem até hoje”, destaca.
Na avaliação de Joice Marques, 34, coordenadora geral da Casa Akotirene —
Quilombo Urbano, o 13 de maio não deve ser celebrado. “É impossível comemorar
enquanto vivemos em uma realidade muito dolorosa. É preciso unificar o nosso
discurso de resistência e luta. Em mais de 130 anos, os avanços são muito
poucos em comparação ao que foi retirado. É preciso ter um equilíbrio na
balança”, avalia. “É triste ver que, em 2021, a gente está lutando pela mesma
coisa que há 133 anos. O Brasil é um país que tem um débito com a sua própria
história. A gente precisa desse acerto de contas”, ressalta Joice, que faz um
trabalho junto a Beatriz Velozo e Kellen Vieira na Casa Akotirene de resgate da
história afro-brasileira e da identidade da população negra. O trio tem sido um
pilar importante para a comunidade carente de Ceilândia, principalmente durante
a pandemia, com a assistência na saúde mental e social de 150 famílias.
Conquistas e desafios: Falar de avanço da população
negra só é possível ao evocar a luta dessa comunidade. “Foi muito sangue
derramado para que essas conquistas se tornassem reais. Mas, a principal delas
é a criminalização do racismo, isso no final da década de 1980, depois de quase
100 anos da abolição. E essa é uma conquista que ainda não foi consolidada,
temos poucas condenações pelo crime”, frisa Geovanny Silva. Para ele, o maior
desafio, hoje, é o racismo.
“Precisamos superar o caos do sistema de segurança pública, que mira em um
jovem negro de qualquer forma. A gente vê chacinas, como a que teve na semana
passada, na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. São vidas negras
colocadas em risco. Isso é um grande desafio. De não criminalizar a população
negra e sua cultura”, avalia Geovanny.
A política de cotas nas universidades e em concursos públicos é um elemento de
promoção da população negra de grande impacto, na análise da professora do
Departamento de História da UnB Ana Flávia Magalhães Pinto. “O Brasil se
beneficiou muito dos movimentos sociais negros. As lutas pelo SUS (Sistema
Único de Saúde) envolveram muitos militantes negros. As ações afirmativas, a
política de cotas sociais. As políticas de saúde de combate à mortalidade
infantil. O 13 de maio é um dia de luta pela manutenção dos direitos
conquistados”, defende a docente.
História: Ana Flávia conta que o processo para a
abolição da escravidão no Brasil foi lento e começou bem antes de 1888. “É
importante a gente falar das vidas negras que fazem parte dessa luta. Luis
Gama, Chiquinha Gonzaga, Maria Firmino dos Reis, entre outros nomes foram
grandes abolicionistas”, lembra. Os movimentos negros iniciaram e, ao longo dos
últimos anos, têm ganhado força e fôlego.
De acordo com a historiadora, o Estado fez de tudo para prolongar a escravidão
no Brasil, com liberação de direitos feita aos poucos. Um dos primeiros marcos
ocorreu alguns anos após a independência do país, em 1831, com a Lei Feijó, que
proibia o tráfico de escravos. “Mas essa lei não era cumprida, e muitos negros
eram escravizados ilegalmente”, explica a professora. Apenas em 1850 esse tipo
de ação foi erradicada no território brasileiro.
Em 1871, outro marco com a Lei do Ventre Livre, a qual permitia que os bebês
das escravas nascessem libertos. Na prática, as crianças ficavam sob a tutela
do senhor, dono dos escravos, até os 8 anos e, depois, poderiam ser
encaminhados para a tutela do Estado. “Nesse período, muitas mães fugiam para
ficar com os filhos ou pagavam uma indenização para garantir a liberdade dele.
Com essa lei, era possível, também, reivindicar a sua liberdade, mas o valor
era muito alto”, explica Ana Flávia. Após 14 anos, foi decretada a Lei
Sexagenária, autorizando a libertação de escravos com mais de 60 anos. E três
anos depois, a abolição da escravidão no país.
Solidariedade: A Frente Nacional Antirracista (FNA), em
parceria com a Central Única das Favelas (Cufa), fará um ato nacional para
marcar o dia da abolição do trabalho escravo no Brasil. A ação está prevista
para ocorrer em várias regiões do país com entrega de cestas básicas em
favelas, comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas. No Distrito
Federal, a iniciativa entregará, hoje, 300 cestas básicas para famílias em
situação de vulnerabilidade social do Sol Nascente.
Linha do tempo: 1831 Lei Feijó: proibição do
tráfico de escravos que, na prática, não surtiu muito efeito.1850 Lei Eusébio de Queiroz: fim efetivo do tráfico de
escravos no Brasil.1871 Lei Rio Branco (lei do Ventre
Livre): filhos de escravas nascem livres do regime escravocrata brasileiro.
Oportunidade de compra da liberdade.1885 Lei
Saraiva-Cotegipe (Lei sexagenária): libertação dos idosos com 60 anos ou
mais. 1888 Lei Áurea: abolição formal da escravidão no
Brasil.
Cibele Moreira – Fotos: Ana Rayssa/CB/D.A.Press – Carlos Vieira/CB/D.A.Press – Correio Braziliense.