A chegada dos candangos à terra que abrigaria a
nova capital do Brasil começou a dar forma à cidade antes mesmo da inauguração
oficial. No local que hoje abriga o Museu Vivo da Memória Candanga, a vida
pulsou pelos mais diversos caminhos, dentro e fora do que planejaram nas
pranchetas arquitetos e engenheiros. Se a cidade era livre, como dizia o nome,
aqueles trabalhadores e todos os familiares e forasteiros que vieram desbravar
o Planalto Central com diferentes objetivos fizeram valer a designação.
Marilda Moraes Porto, 80 anos, conserva as
lembranças vivas desse período, muitas delas guardadas no museu, no Núcleo
Bandeirante, antiga Cidade Livre. É lá que se encontra a mala em que ela trouxe
as roupas de Rio Verde (GO), a mobília do consultório do marido e a primeira
casa da pioneira no Distrito Federal. Tudo, hoje, faz parte do acervo e está
exposto para quem quer conhecer um pouco mais sobre a construção da cidade de
Juscelino Kubitschek.
Casada com Edson
Porto, o primeiro médico de Brasília, Marilda chegou à capital antes mesmo da
inauguração. “Ele veio em 1956. Em 1957, eu vim para Brasília pela primeira
vez, com a turma do colégio, e nós já namorávamos. Com 18 anos, a gente se
casou e vim morar aqui. A casinha já estava pronta. Ele comprou uma mesinha,
que eu tenho até hoje”, lembra.
Erguido também em
1957, o Hospital Juscelino Kubitschek de Oliveira (HJKO), primeiro da cidade,
atendia trabalhadores que atuavam na construção. A obra durou apenas 60 dias.
Ali funcionavam ambulatórios, centro cirúrgico, serviços gerais e
administração. No mesmo local, moravam, no alojamento e em casas, os
funcionários do centro de saúde.
“Todo mundo era muito jovem, estava conseguindo o primeiro emprego. Muitos
falavam que isso aqui não ia para a frente. A gente ficava até meio preocupado,
mas deu certo, e foi uma benção para nós. Tenho muito amor por Brasília e pela
maneira como ela foi feita. Da minha casinha, eu escutava o barulho das
construções. Como não tinha nada, a gente ouvia o som das máquinas e todo mundo
vibrava com isso”, ressalta.
O início de tudo: O museu também tem um lugar
especial no coração da dona Laurecy dos Santos, 81. Foi entre as paredes de
madeira que a mineira deu à luz os dois primeiros filhos. A aposentada veio
para Brasília em 1958. “Era recém-casada. Meu esposo veio trabalhar aqui.
Quando eu vim, já estava grávida de sete meses”, lembra.
Ela morava em um acampamento, localizado próximo à área onde hoje fica o Jardim
Zoológico. E foi em um pequeno barraco que começou a sentir as dores do parto.
Ângela, a primeira filha, estava a caminho. “Fui para o hospital em um caminhão
da empresa”, conta. Era por volta das 22h quando a menina nasceu, de parto
normal. Na certidão de nascimento, o registro: “Nascida em Brasília, futura
capital do Brasil”.
Sem parentes na cidade, Laurecy convidou a enfermeira que a acompanhou para ser
madrinha da menina. “Ia ser minha irmã, mas ela não tinha chegado e eu não
queria esperar muito tempo. Queria batizar minha filha logo”, justifica. Ela
lembra que o hospital vivia lotado, porém, todos eram bem atendidos. “Não havia
muitos especialistas, mas, pelo volume de pacientes, o atendimento era muito
bom”, comenta. O lugar também foi cenário para o nascimento do segundo filho.
Enquanto isso, nos arredores do hospital, cresciam as ocupações de lotes por
trabalhadores e moradores de todos os cantos do país, que vieram tentar a vida
na futura nova capital. Assim se formaram as comunidades da Vila Tenório, Vila
Sarah, Vila Esperança, Vila do IAPI, Morro do Urubu e Morro do Querosene, como
explica o geógrafo Aldo Paviani, professor emérito da Universidade de Brasília
(UnB). “Tinha gente que ia de bicicleta para o Plano Piloto trabalhar, além dos
trabalhadores do comércio do Núcleo Bandeirante. Tudo o que você precisava
resolver era na Cidade Livre”, comenta.
O planejamento da região favoreceu o fortalecimento daquelas primeiras
comunidades da capital, segundo o especialista. “Aquele lugar foi desenhado e
bem pensado, com uma identidade própria até. A cidade tinha uma sucessão de
edifícios feitos de madeira, padronizados, da mesma tipologia e com proporções
agradáveis, sem nada enorme que ultrapassasse três níveis. Como uma maquete em
tamanho real, com vida muito intensa entre as construções”, explica Cláudio.
Isso tudo acabou contribuindo para um sentimento de pertencimento àquela região
e à própria capital, motivos de orgulho até para quem só passava pela terra
onde seria consolidado o Distrito Federal. “Todo caminhoneiro que vinha trazer
cimento, madeira ou qualquer outro material de construção, passava na Cidade
Livre para pintar nos para-choques do veículo a coluna do Palácio da Alvorada,
como se dissesse: ‘Eu estive lá na futura capital do Brasil!’. É muito bacana
ver que a arquitetura de Brasília não era importante só para os eruditos, mas
também para os populares”, observa o arquiteto.
Hoje, Cláudio continua admirado pela Cidade Livre. “Atualmente, é um dos
melhores lugares para se morar em Brasília, com uma qualidade urbana muito boa
e uma nostalgia incrível. Muita gente de fora do Núcleo Bandeirante quis mudar
as características iniciais e elevar os prédios, mas a população, sabiamente,
freou os ímpetos imobiliários, consciente do valor desse espaço.”
Desocupação: Em 1971, os moradores das vilas próximas à Cidade Livre
precisaram deixar as suas casas após desapropriação. Os espaços foram
desocupados e as famílias encaminhadas para Ceilândia, formando assim mais uma
região administrativa do DF. “Vinha uma funcionária do serviço social e levava
as pessoas para Ceilândia em caminhões. Foram cerca de 82 mil habitantes”,
ressalta Paviani.
Os médicos que moravam nas casas de madeira foram transferidos para a região
central de Brasília quando os apartamentos funcionais ficaram prontos. As
residências então passaram a abrigar outros trabalhadores da unidade
hospitalar, que ficou aberta até 1968, quando começou a funcionar como posto de
saúde. Em 1974, foi totalmente desativada, após a implantação dos serviços de
saúde do Núcleo Bandeirante.
Os moradores da vila do hospital também a desocuparam. “Eles se mudaram para a
Candangolândia quando a cidade foi regularizada. Quem estava ali ganhou lote.
Porém, antes disso, esses moradores pediram o tombamento do hospital”, explica
o arquiteto Silvio Cavalcante.
O espaço foi tombado em 1985 e os puxadinhos feitos pelos últimos moradores,
retirados. Nascia ali o Museu Vivo da Memória Candanga. “Brasília teve uma
incrível arquitetura de madeira. Um dos monumentos é o Catetinho, porém o
HJKO acaba sendo a edificação mais popular da época da construção, pois o
Catetinho era a residência oficial do presidente e o hospital era mais para a
população”, destaca o arquiteto.
Trajetória marcante: Desocupado o hospital, o espaço
virou guardião da trajetória dos primeiros moradores da capital. Entrar no
Museu Vivo da Memória Candanga é como voltar no tempo. Uma exposição com fotos,
mobília original do Brasília Palace, consultório da antiga unidade de saúde,
malas, equipamentos de obra, entre outros itens, lembra o trabalho incansável
dos pioneiros.
Além dos artigos históricos, o espaço recebe oficinas de artesanato (veja
quadro). “O museu é chamado de vivo por isso. Ele não é um lugar parado”,
observa a gerente, Eliane Falcão. “Temos oficinas de cerâmica, costura,
arteterapia. É um espaço para a comunidade”, completa.
O lugar também é uma verdadeira aula de história. Tanto que parceria com a
Secretaria de Educação promove uma visita guiada para que estudantes conheçam a
história da construção da capital. “Estamos fazendo um levantamento para
expandir também a escolas particulares”, acrescenta Eliane.
Marilda morava numa dessas residências. A primeira do conjunto. “Eu era jovem. Meu marido fazia muitos plantões. Então, muitas vezes eu passava a noite inteira no hospital para fazer companhia a ele e não ficar sozinha”, relata. Ela conta que a vila era tranquila. As portas costumavam ficar abertas e os vizinhos acabaram se tornando uma grande família. “O povo se reunia à noite. Meu marido gostava de tocar, a gente se divertia muito”, comenta.
Membros da Loja Maçônica Alvorada nº 1 se orgulham de fazer parte do começo da nova capital
Nascida com nova cidade: Foi também na Cidade Livre que nasceu a Loja Maçônica Alvorada nº 1, erguida ainda em 1957 e oficialmente inaugurada em 1960. O local serviu como ponto de encontro de brasileiros vindos de diferentes pontos do país em busca de algo comum. A loja maçônica acabou sendo um lugar “apaziguador de saudades” e palco de concentração de pessoas importantes para a consolidação da capital, como detalha o venerável mestre da loja, Amaury Dias, 49. “Os maçons que vinham para Brasília ficavam longe da família e dos entes queridos. Aqui, encontraram um local para se reunir, com irmão na nossa loja, que era feita toda de madeira. Isso ajudou os primeiros moradores a superarem as dificuldades num clima de fraternidade. Tudo era difícil naquele tempo”.
“Criamos aqui o espaço de uma escola filosófica de pensamento e autoaperfeiçoamento, onde convivemos com pessoas que se destacam não financeiramente, mas moralmente. Essa participação foi importante para a então Cidade Livre, assim como sempre é relevante em outros contextos, porque nós, como maçons, fazemos parte de projetos diversos, em todos os níveis, do estratégico ao operacional”, define Armando Assumpção, 57 anos.
A ligação de pessoas do grupo com a capital é histórica e data de séculos atrás, segundo Miguel Ferreira, 59, que está no grau 33 da hierarquia maçônica. Em 1823, começaram as primeiras manifestações oficiais de políticos do Brasil que temiam ter uma capital em estado litorâneo, pois ela poderia ser facilmente invadida, e nasceu o primeiro capítulo do diálogo entre essa sociedade e Brasília.
“José Bonifácio de Andrada e Silva alertou para esse risco de ataques e propôs a idealização da capital federal no centro do país. E ele era maçom”, lembra Miguel. Aquele desejo de transferência do principal polo político do país se tornou realidade com Juscelino Kubistchek. Para isso, a vida pulsante da Cidade Livre foi essencial. “Essa era uma região bem semelhante ao nome. O comércio era livre de impostos, tinha um incentivo para as pessoas se instalarem e darem suporte aos trabalhadores”, conta.
Citações históricas: “Chamou-se ‘Cidade Livre’ para evidenciar a oposição relativamente à outra, construída segundo normas rígidas. Pensaram os construtores de Brasília que poderiam suprimir essa cidade, logo terminada a construção da capital, ou que estaria em suas forças substituí-la, atribuindo residências corretas aos seus ocupantes. Isso, porém, não foi obtido até então, e o que resta é um vivo contraste.”
Milton Santos, 1965: “Foi na Cidade Livre que a ideia de Brasília floresceu e se exprimiu na evolução de um foco de vida urbana e de orgulho local. O espírito vigoroso de Velho Oeste permeia as suas ruas, em uma mescla de idealismo e comercialismo desenfreado. A vida urbana que ali brotou espontaneamente é preciosa demais para ser destruída; na verdade, não se consegue entender como foi possível construir Brasília sem levar em conta o papel desempenhado pela Cidade Livre; uma é parte da história da outra. A sua atmosfera descontraída e buliçosa faz um belo contraste com a elegância e a formalidade de sua augusta vizinha.”
David Crease, 1982 - Fontes: A cidade nos países subdesenvolvidos, de Milton Santos, e Progresso em Brasília, The Architectural Review, n.782 Srviço: Museu Vivo da Memória Candanga Endereço: Epia Sul, SPMS, Lote D — Núcleo Bandeirante - Horário de visitação: de segunda-feira a sábado, das 9h às 17h; Contatos: 3301-3590 | 3327-2145 | mvmc1990@gmail.com | educativomvmc@gmail.com - Área: 1.265 m² (edificada em madeira)