Toda a cidade que se preza, aqui ou em qualquer
outra parte do mundo, deve ser concebida como algo vivo na paisagem que cresce
e vai se desenvolvendo ao longo do tempo, numa dinâmica orgânica que muito se
aproxima do ciclo evolutivo e natural humano. O que torna a cidade viva não são
suas ruas, avenidas, praças e monumentos, mas, sim, o frenesi de sua população,
que flui por seus espaços como um sangue correndo por entre artérias e veias.
Ocorre que o motor capaz de tornar tudo isso
possível, e que muitos acreditam ser a verdadeira alma de uma cidade, é
induzido pelo fermentar de sua atividade cultural, fervilhando noite e dia sem
parar. Em outras palavras, a alma de uma cidade está na sua capacidade de
produzir arte e cultura. É isso que identifica e dá vida a uma cidade. Cidades
sem alma, que também existem como zumbis, são aquelas em que a arte e a cultura
foram expulsas de seus limites, ou sequer chegaram a adentrar. Sendo assim, é
fato que não podem existir cidades vivas apartadas da cultura e da arte dos
seus habitantes.
Não por outra razão, desde os estabelecimentos das
primeiras civilizações, há milênios, a preocupação primeira com a criação de
cidades que espelhasse a dinâmica da vida e seus mistérios, levou os
construtores a criarem, simultaneamente, praças com monumentos, jardins,
portais, arcos e monólitos colossais, tudo para embelezar e dar vida ao
ambiente, numa demonstração de que, naquele lugar, havia vida e cultura
assentadas. É esse o sentido primeiro e que até hoje é seguido em todo o mundo.
Quiseram os idealizadores da capital do país, dotar
Brasília dos mais belos, amplos e modernos espaços dedicados à celebração das
artes. A corrente modernista, que nos anos 1950 e 1960, guiou os traços urbanos
da nova capital, tinha em seu propósito básico o conceito de conjugar arte e
arquitetura, dando a uma e a outra não apenas a oportunidade de diálogo entre o
concreto e o abstrato, mas atingir, com essa proposta, a possibilidade real de
demonstrar a capacidade de um povo de erguer uma cidade viva a espelhar a força
criativa de sua gente, e que nada ficava devendo em qualidade a outras obras
primas mundo afora.
A importância dessa união entre arte e arquitetura
é que permitiu elevar a capital ao patamar de patrimônio cultural da
humanidade. Foi com esse pensamento que os idealizadores de Brasília
conceberam, logo nos primeiros projetos, os principais monumentos devotados,
exclusivamente, à contemplação cultural e artística. Foi assim que, antes mesmo
de se pensar em prédios para escritórios, foi projetado o Teatro Nacional, com
várias salas para exibição do que o Brasil sempre produziu de melhor na música,
no teatro, além de museus como o de Arte Moderna, dedicado à pintura, à
escultura e às produções do universo das artes plásticas.
Logo em seguida, surgiram por toda a cidade espaços
e salões dedicados à celebração das artes, como o Espaço Funarte, o Espaço 508,
galerias Oscar Seraphico, entre algumas outras famosas, que traziam o que de
melhor era produzido no Brasil e no mundo para exibir ao público da cidade.
Houve um tempo, lá pelos anos 1970, que Brasília se orgulhava de ter mais de 30
galerias de arte.
Também os espaços culturais, onde se assistiam a
apresentações alternativas de teatros e musicais, invadiram a cidade com a
luminosidade das artes. A Escola de Música, com seu teatro amplo, enchia a
cidade de sons. Outros lugares, como a Concha Acústica, as galerias do Banco do
Brasil e da Caixa Econômica, ajudavam a capital a permanecer acesa durante as
madrugadas.
Houve um tempo, acredite se quiser, que Brasília
pulsava dia e noite. Os concertos e apresentações se seguiam nos amplos espaços
verdes, como é o caso do Concerto Cabeças, a revelar o que Brasília tinha de
melhor e de mais promissor no campo da música e da poesia. Por toda parte e, ao
longo de toda a semana, os espetáculos e mostras aconteciam.
Na UnB, seu auditório de música, era agenda frequente para alunos e ouvintes. Espaços, como os da Casa Thomas Jefferson e da Aliança Francesa, traziam músicos e artistas de seus países, atraindo sempre grande público. Infelizmente, todo esse fervilhar foi sendo reduzido por uma conjunção de fatores, que aliou gestores públicos, infensos à cultura, falta de incentivos diversos, crescimento desordenado da cidade, com o surgimento da violência urbana, além de outras causas mais sérias trazidas por uma pandemia mortal sem prazo para acabar e governos federal e distrital, que parecem ter na cultura um inimigo a ser derrotado. Tempos tristes esses em que a cidade, que antes pulsava em nossas mãos, hoje se apresenta como uma dama morta.