O emaranhado de ruas e vidas compartilhadas no
trânsito das grandes cidades produz uma epidemia global: a morte precoce de
milhares de indivíduos. Na maioria das vezes, não são as falhas de engenharia
viária que matam 13 milhões de pessoas no mundo — 31.945 delas só no Brasil. O
que mais provoca óbitos no ir e vir das urbes é o comportamento de quem está
atrás do volante.
No Distrito Federal, a cada dois dias, em média,
uma pessoa morre nas pistas. Excesso de velocidade, alcoolemia e uso de
telefone ao volante são algumas das causas mais recorrentes. Neste semestre,
motoristas protagonizaram brigas e ataques de fúria. Um desses casos resultou
na morte de um jovem motociclista; outra ocorrência deixou uma servidora
pública em coma e com diversas sequelas. Agora, a capital do país — que, duas
décadas atrás, havia decidido deixar reinar a paz no trânsito — se envergonha
pela selvageria que tomou conta das ruas.
Quando essa brutalidade tirou a vida de Carlos
Roberto Barbosa Rocha, 21 anos, agarrar-se às memórias foi o que restou à mãe
do motociclista, Maria da Providência Barbosa, 48. No braço direito, ela gravou
uma tatuagem em homenagem ao filho: “É na lembrança do seu sorriso que eu sigo
meu caminho”. No esquerdo, carrega a pulseira de prata que o jovem sempre
usava, inclusive no dia em que morreu na BR-040.
Carlos Roberto trafegava pela rodovia que liga
Brasília ao Rio de Janeiro enquanto fazia entregas para uma lanchonete de Santa
Maria, a cerca de 30km da Praça dos Três Poderes, onde havia conseguido emprego
dois dias antes da tragédia. Na região administrativa, morava com a mãe e o
pai, Roberto Carlos Rocha, 49, em uma casa simples, sem andares, fechada por um
muro branco e um portão de ferro esverdeado devido à ação do tempo. O jovem
cruzou aquela passagem pela última vez ao se despedir de Maria da Providência.
Eram 16h25 de 21 de outubro. Cinco minutos depois, um amigo da família avisou a
auxiliar de rouparia que um carro havia atingido a moto do filho dela. O
motorista fugiu.
Vazio: No local do ocorrido, Maria da
Providência entrou em desespero. “De longe, vi o corpo dele estendido no chão,
perto do poste. Saí correndo, gritando, só que não me deixaram chegar perto.
Soube que ele ficou vivo por 20 minutos, chorando e chamando por mim. Os
bombeiros tinham colocado ambulâncias na frente, para que eu não visse o corpo.
Mas vi quando sacudiram a cabeça, de um lado para o outro, como quem diz que
(Carlos Roberto) não tinha mais batimentos”, detalhou a mãe, emocionada.
O acusado de provocar a morte do jovem dirigia um
Chevrolet Vectra verde-escuro e teria jogado o veículo contra a moto de Carlos
Roberto, uma Honda CB Twister vermelha de 250 cilindradas, após os dois
discutirem no trânsito. Uma suposta troca de faixa sem sinalização do motorista
levou ao desentendimento. A violência do impacto tirou qualquer chance de
sobrevivência do entregador. O condutor só foi preso graças à denúncia de uma
testemunha, que acionou a polícia e informou a placa do carro. O inquérito
encerrado o indiciou por homicídio doloso — quando há intenção de matar.
Na última semana, um mês após o ocorrido, a família
da vítima voltou à 33ª Delegacia de Polícia (Santa Maria). Enquanto aguardam
novidades sobre o caso, os pais e as duas irmãs de Carlos Roberto tentam lidar
com o vazio provocado por uma morte precoce e implacável. Ao mostrar roupas e
fotos do caçula, além das galochas e do capacete que usava no dia em que morreu
— este último com alguns arranhões —, Maria da Providência menciona a paixão
por motos que compartilhava com o filho e a vontade que o jovem tinha de cursar
gestão pública.
Com a interrupção dos planos, restou a convivência com a dor da perda. “O que me revolta é saber que o assassino do meu filho pode ficar em liberdade a qualquer momento. Está doendo muito. Agora, vem a pior parte. Ainda não assimilei que ele morreu. Para mim, ele vai voltar em algum momento. (Penso) que ele está viajando e, a qualquer hora, volta”, lamentou a mãe, com a voz embargada. “Está muito difícil. Mas tentamos nos apegar às coisas boas que ele deixou.”
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicado em 2020, estima em R$ 40 bilhões por ano os custos das mortes nas vias para os cofres do Brasil. O valor médio associado a despesas como cuidados hospitalares, perda de força produtiva, danos materiais e processos judiciais fica perto de R$ 664 mil para os cofres da União.
Do ponto de vista das políticas públicas, o cálculo
de quanto o país perde com as tragédias sobre rodas é imprescindível para
definir ações e traçar metas de prevenção e de redução dos casos. “A ONU
(Organização das Nações Unidas) e a OMS (Organização Mundial da Saúde) estimam
que as perdas provocadas pelos sinistros de trânsito variam de 3% a 5% do
Produto Interno Bruto (PIB). Por outro lado, há um consenso entre os
pesquisadores de que, para cada US$ 1 investido na prevenção, os governos
economizam US$ 6”, alerta Flávio Adura, diretor-científico da Associação
Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) e professor aposentado do
Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo.