Um dia, no verão de 1965, as freiras do Sagrado Coração se distraíram e,
não deu outra. Lá estava Ana Maria Magalhães, em pleno Arpoador, Ipanema, sol a
pino, numa guerra de areia com Leila Diniz. Isso, claro, bem antes de ambas se
consagrarem como artistas, e a brincadeira, inocente, que terminaria “num
grande mergulho nosso”, selar união de uma vida inteira.
“Leila tinha acabado de se separar do (cineasta e dramaturgo) Domingos
(Oliveira)”, lembra hoje a atriz e cineasta, Ana Maria. “Depois fomos para o
bar Jangadeiro, Maria Gladys (atriz), Leila e eu, e tomamos muito chope”,
rememora a diretora
“É um documentário sobre a Leila, o cinema brasileiro e a amizade”,
resume Ana Maria Magalhães, desde 1982, debruçada sobre o projeto Ana Maria
Magalhães, diretora
Eram todas mulheres à frente de
seu tempo, e a relação de amizade entre elas se intensificaria durante as
filmagens do longa, “Azyllo Muito Louco” (1970), de Nelson Pereira dos Santos,
em Paraty. Seriam inseparáveis até a morte abrupta do furacão Leila, em 1972,
no auge da carreira, num trágico acidente aéreo.
Essas e outras histórias são contadas no documentário “Já que ninguém me chama para dançar”, filme de abertura da 54ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (FBCB). O título do projeto, aliás, evidencia a grande intimidade que existia entre as amigas. “Era uma expressão que a Leila usava quando estávamos em algum bar e ela se levantava para ir ao banheiro”, revela Ana Maria Magalhães.
“É um documentário sobre a Leila, o cinema brasileiro e a amizade”, resume Ana Maria Magalhães, desde 1982, debruçada sobre o projeto.
“Um dos motivos principais de eu ter feito esse filme é o resgate da memória da Leila. É uma pessoa que precisa ser lembrada sempre e ela andava muito esquecida”, lamenta a diretora Ana Maria Magalhães
“O filme foi gravado em vídeo, que
naquela época não conversava com o cinema. Até que, ao digitalizá-lo, na
Cinemateca Brasileira, em 2015, fui alertada pelo restaurador Fabio Fraccarolli
de que o filme estava morrendo”, conta a cineasta. “Por ter sido gravado em
U-Matic, algumas partes já estavam irrecuperáveis. Foi aí que decidi restaurar
as entrevistas, conseguir os trechos de filmes em tecnologia mais avançada, construir
outra trilha sonora e reeditar tudo”, explica.
Raro e emblemático registro de uma
das mais revolucionárias personalidades brasileiras dos anos 1960, o
documentário é rico de memória, afeto e vida, assim como foi Leila nos ligeiros
27 anos em que viveu. Ou seja, uma mulher que tirava de letra o dia a dia e não
“fundia a cuca”, como diz um dos entrevistados no filme.
É o retrato não apenas de uma
artista moderna em constante atrito com o conservadorismo de parcela da
sociedade da época, mas também uma radiografia de um Rio de Janeiro da boemia,
de certa inocência e do romantismo desmedido e, porque não, das maldades sem
vilanias.
“Sou muito calhorda, me entendo com todo mundo”, disparou Leila, sem
papas na língua. “O palavrão virou uma verdade em mim”, ironizou certa vez a
atriz
E algumas imagens inéditas pegam o
espectador de surpresa, como as cenas de um longa de Gustavo Dahl, dos anos
1970, que nunca ganhou as telas, com Leila e Ana Maria Magalhães bailando ao
som de uma marchinha de carnaval, uma paixão, exultantes. Com roteiro elaborado
como quem escreve uma carta para a amiga que partiu tão cedo, a cineasta, quebrando
o convencionalismo da narrativa documental, manda um recado: “Acho que você
teria muitos seguidores hoje, Leila”, brinca.
Parceiros: Relevante como testamento, “Já que ninguém me chama para dançar” ganhou sobrevida graças a parceiros importantes. Além do Itaú Cultural, o projeto contou com o apoio do produtor e cineasta brasiliense Lino Meireles, autor do livro e do documentário “Candango – Memórias do Festival”, que conta a história e histórias do Festival de Brasília, a maior e mais longeva festa do cinema nacional.
“Temos uma imagem da Leila totalmente transgressora e revolucionária, um
personagem iconoclasta dos anos 1960 que falava palavrão e usava roupas
ousadas, mas tudo sem maldade. O filme vai tirar essa aura de uma pessoa
difícil e devolvê-la ao papel de doce” Silvio Tendler, cineasta e curador do
54º FBCB
“No meu filme, usei algumas fotos
feitas por Orlando Britto, da Leila Diniz, Ruy Guerra e Ana Maria na piscina do
Hotel Nacional. Por conta desse pequeno momento, fortuitamente capturado, me
conectei ao projeto, fiquei muito feliz em saber que também poderia
contribuir”, recorda Meireles.
“Leila Diniz era uma pessoa
apaixonada, apaixonante e à frente de seu tempo. Ela enfrentava de modo
político e artístico, questões que, embora tenham melhorado, nunca foram
resolvidas, e por isso ela continua atual”, observa o diretor e produtor.
Transgressora, ousada e polêmica, Leila Diniz era uma força da natureza que, pelas posições e comportamentos ousados que abraçou, transformou-se num dos mitos dos anos 1960. Hoje, pode até parecer a coisa mais natural do mundo, mas a foto da artista de biquíni e barrigão de fora, grávida da filha Janaína, no início dos anos 1970, pelas praias do Rio de Janeiro, quebrou tabus e convenções. A ponto de não ter como falar em emancipação da mulher e feminismo, atualmente, e não se lembrar da postura vanguardista de Leila Diniz. (Leila Diniz, Ruy Guerra e Ana Maria na piscina do Hotel Nacional)
“Temos uma imagem da Leila
totalmente transgressora e revolucionária, um personagem iconoclasta dos anos
1960 que falava palavrão e usava roupas ousadas, mas tudo sem maldade. O filme
vai tirar essa aura de uma pessoa difícil e devolvê-la ao papel de doce”,
comenta Tendler, que a conheceu em 1968, às vésperas do Ato Institucional N° 5,
durante inauguração de um Cine Clube em Jacarepaguá.
“Íamos inaugurar o Cine Clube
Leila Diniz, fomos todos juntos num fusca, cinco pessoas, além do motorista e
do representante do Cine Clube, eu, o Toquinho (músico) e ela, que era uma
pessoa muito agradável, uma flor”, recorda.
Para a cineasta Ana Maria
Magalhães, o resgate desses dois lados de uma mulher que mexeu com a rotina de
uma sociedade conservadora e ainda em transformação no que tangia conceito e
comportamento, é fundamental, lançando luz para as novas gerações. Sobretudo no
que diz respeito “à igualdade entre homens e mulheres, às relações mais
afetuosas entre as pessoas, à fraternidade entre pessoas de gêneros diversos, à
sonoridade genuína na relação com as amigas e à entrega nas relações amorosas”.
“Um dos motivos principais deu ter
feito esse filme é o resgate da memória da Leila. É uma pessoa que precisa ser
lembrada sempre e ela andava muito esquecida”, lamenta Ana Maria. “Não
considero a Leila uma figura anárquica. Ela foi até bastante coerente com o que
pensava e sentia. A importância dela é histórica, em primeiro lugar, por causa
dos caminhos que abriu para as mulheres e a mudança dos costumes”, destaca.
A Brasília da cineasta: Filha de parlamentar, desde cedo, a atriz e cineasta Ana Maria Magalhães mantém relações estreitas com a capital do país e o Festival de Brasília. A primeira vez que chegou à cidade tinha 10 anos, em 1960, portanto, cinco anos antes da criação da mostra de cinema por Paulo Emílio Salles Gomes e demais intelectuais da Universidade de Brasília.
Entre 1969 e 1977, ela era figura
constante no evento e nos principais points da cidade, como o próprio Hotel
Nacional e o bar e restaurante Tabu. No final dos anos 1970, integrou o elenco
do filme “A Idade da Terra”, último projeto do cineasta baiano Glauber Rocha,
com grande parte das cenas rodadas no DF. “Tenho imenso orgulho de ter
participado desse que considero um dos melhores filmes brasileiros de todos os
tempos. O encontro artístico com o Glauber foi maravilhoso, nos gostávamos como
irmãos”, diz cheia de saudade.
“Até depois de 1964, quando meu
pai foi cassado, continuei a ir a Brasília. Meu irmão morava na cidade e minhas
sobrinhas ainda moram. O Festival de Brasília era uma verdadeira festa ao tempo
em que o frequentei. Foi sempre uma alegria participar do festival, que é a
casa do cinema brasileiro”, reflete.
O filme pode ser visto gratuitamente na ~~~ plataforma InnSaei.TV. ~~ Acesse: Programação – 54º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro ~~ Veja a linha do tempo ~~ A edição 54 – 2021.