Fui até a lojinha da Fundação Athos Bulcão, na 404
Sul, para pegar o calendário de 2022. Vários amigos me dizem que, com as
engenhocas virtuais, esse marcador do tempo se tornou arcaico, basta dar um
clique no celular. Mas, de minha parte, não consigo me orientar sem o
calendário do Athos. Gosto de marcar os compromissos, as datas de consulta ou
os acontecimentos. Sem isso, fico perdido no tempo.
Pois bem, logo ao chegar à lojinha, me deparei com
o painel de uma foto clássica do Athos, tirada por Mila Petrillo. Conheço a
imagem há muito tempo, mas ela sempre me comove. A composição é muito feliz. Em
vez de colocar o artista, à frente, e a Igrejinha da 307 Sul, ao fundo, Mila
pediu que Athos ficasse em um vão de madeira branca, ao centro, entre as pombas
que representam o Espírito Santo no painel azul e branco. Então, a impressão
não é a de que o mural é um cenário, mas, sim, a de que Athos emerge de dentro
da sua obra.
Se o artista integra arte e arquitetura, Mila
integra Athos à sua obra com intenso efeito lírico. Mas, além da composição
primorosa, impregnada de sugestões poéticas, um outro aspecto chama a atenção:
a postura do Athos. Ele sempre foi um integrante da raça dos tímidos, um
habitante do silêncio, que ficava em casa à espera que alguma coisa boa lhe
caísse na cabeça como um raio.
Se divertia ao contar a história da tentativa
frustrada de ser ator na companhia Os comediantes, no Rio de Janeiro: “Você
está com uma cara de pedra. Procure dar uma expressão humana”, lhe dizia o
diretor Adauto Botelho. Athos não falava; sussurrava de tanta timidez, uma
timidez que chegava a lhe travar o corpo. Felizmente, sempre foi salvo pelos
amigos.
Mila é uma mestra da fugacidade. Ela adestrou o
olhar ao assistir os filmes dos grandes mestres do cinema. Mira o enquadramento
e o movimento. Fica de tocaia com a máquina na mão e o olho atento à espera de
captar a luz precisa que lhe permitirá registrar o átimo fugidio do instante. A
beleza que Mila cultiva não é a bonitinha, mas ordinária. Ela exercita a beleza
bruta germinada pela arte, que nasce de cada ser ou personagem.
Athos fez uma pose de cruzar os braços que é, na
verdade, uma antipose. No entanto, em vez de ignorar, Mila teve a sensibilidade
de capturar a cena. É uma imagem pungente, reveladora da alma de Athos. Parece
um plano de filme do neorrealismo italiano ou um poema de Manuel Bandeira, pela
simplicidade, o despojamento e o lirismo extremos.
Enquadrado pela parede branca, ladeado pelo painel
das pombas do Espírito Santo, com os braços cruzados desajeitadamente, Athos
aparece na foto como um personagem gauche, um pierrô contido e um anjo torto do
modernismo. É desconcertante que esse tímido, que esse habitante do silêncio,
tenha sido um dos mais importantes artistas públicos brasileiros.
Que sorte a de Athos e a nossa de termos alguém com
o talento e os radares de sensibilidade poderosos de Mila Petrillo para
eternizar esse instante em uma foto.