“Como pode uma deusa morrer?” Me pergunta uma amiga, ainda sob o abalo da morte de Elza Soares. Sim, de fato, no palco ela era uma deusa, mesmo em cima de uma cadeira de rodas, como se apresentou nos últimos anos, depois de uma queda em que quebrou três vértebras. Na vida, era uma mulher extraordinária, humana, demasiado humana.
Ela reinventou o samba e cantava
com a alma das grandes cantoras americanas formadas na tradição do jazz: Billy
Holliday, Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald. Só que ela misturou e abrasileirou o
jazz com o suingue carioca. Improvisava de maneira frenética como se fosse uma
Garrincha de saias do samba. Tudo que cantou virou Elza Soares. Para emparelhar
com ela no Brasil, só me lembro de Clara Nunes e sua voz solar.
“A carne mais barata no mercado é
a carne negra” é um verso contundente. Mas na voz de Elza ganhava mais alguma
voltagem dramática arrasadora, como o grito de revolta de uma raça. Muitas
décadas antes de a BBC sagrar Elza como a voz do milênio, Louis Armstrong ficou
fascinado quando a viu cantar em um show de abertura da Copa de 1962, no Chile.
Enquanto isso, Elza também ficou maravilhada com ele, mas comentou: “esse
neguinho está me imitando”.
É que Armstrong cantava com aquela
mesma voz arranhada, que difundiu internacionalmente, sob o nome de scat, mas
que Elza aprendeu sozinha, experimentando a voz, cantando com uma lata na
cabeça. “Lata na cabeça/é o estandarte/de uma arte”, cantaria mais tarde.
Armstrong queria levar Elza para os Estados Unidos, mas ela não foi porque
estava apaixonada por Garrincha.
Aprendi a admirar a mulher Elza
Soares ao ler a excelente biografia de Garrincha, escrita por Rui Castro. Ele
desmistificou a imagem distorcida e estúpida de Elza, como a mulher oportunista
que destruiu Garrincha. Elza viveu um amor de salvação e de perdição com o anjo
torto botafoguense e lutou, heroicamente, para livrá-lo do alcoolismo.
Elza nunca ficou estacionada no
tempo e jamais curtiu uma sessão nostalgia. E dava a impressão de rejuvenescer
à medida em que envelhecia. Tornou-se cada vez mais livre, carismática e
revolucionária. Mulata assanhada, com 90 anos, arrumou um namorado de pouco
mais de 20. Interagiu com todas as linguagens do seu tempo. Misturou samba com
rock, samba com jazz, samba com rap, samba com funk e música eletrônica. Ela é
ancestral e moderna, popular e pop, popular e vanguardista. Cantava cada vez
melhor.
Em um show gravado em vídeo, ela
conclama a uma enorme plateia, formada, principalmente, por mulheres jovens: “A
história agora é outra. Gemer só de prazer. Chega de sofrer caladas. Denuncie
por favor. É 180 neles. Machistas não passarão. E não é não. Repete comigo.
Denuncie. Atha Felix tinha 8 anos. O músico Evaldo Rosa levou 80 tiros. Chega.
Chega de perseguir os negros, os pobres. Mulher preta coragem, pra frente!”
Na canção Maria de Vila Matilde, ela berra: “Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180/ (…) Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim.” Ela era uma Billie Holiday dos trópicos, mas, sem depressão, com alegria, gozosa. Elza disse que queria morrer fazendo amor. Não foi dessa maneira que nos deixou. No entanto, ela estava tranquila e, pouco antes da morte, disse a familiares sentir que vinham buscá-la. (Vídeo ~~~~ )