Ainda que o sonho seja bom
Sonhei que a
pandemia tinha chegado ao fim. Acordei achando que o sonho era um bom
presságio. Havia uma energia de esperança, embora a tristeza estivesse
presente. Mas talvez o sonho seja a negação inconsciente da realidade, que
voltou a nos entregar diariamente 1.100 mortos. Voltamos a este patamar e não
tenho visto cruzes na areia, protestos, declarações ou lamentos que não sejam
isolados.
Os alertas da
ciência ecoam ainda, assim como os pedidos de vacina e proteção, as denúncias
de filas de UTIs. Parece pouco diante de tantas mortes. Alguém não haveria de
estar gritando? Não tem mais silêncio do que deveria? O que houve com nossa
voz?
Você não tem
sensações estranhas, como se estivéssemos vivendo uma história de ficção? Um
vírus mutante, que resiste, insiste e não dá trégua. Uma população dividida
entre a dor do luto, o medo da doença, a tristeza do isolamento, a fome, a
falta de dinheiro e de emprego — e não podemos esquecer da parcela que vive sob
completo alheamento, como se tudo estivesse absolutamente normal.
A verdade é
que normal nunca foi. Ou melhor, nunca fomos. Faz tempo que somos o retrato
borrado de um planeta doente e, infelizmente, de um país bem medíocre, apesar
de sua gente boa.
Neonazistas
não chegaram por aqui ontem; políticos que só pensam em alimentar seus monstros
internos, destruindo qualquer avanço nas questões humanitárias, são fantasmas
reais que pairam nessa versão mal-assombrada de eterno país em desenvolvimento.
A pandemia
arrombou a porta da frente e vivemos com a sensação de que pessoas estranhas
estão entrando em casa, ocupando os espaços e fazendo bagunça naquele lugar
sagrado que a gente sempre chamou de lar.
Meu sonho era
o fim de uma longa guerra. Andávamos todos pelas ruínas que sobraram. Havia um
alívio tímido, um cansaço extenuante, um luto ainda permanente, o medo à
espreita, sequelas diversas de um tempo muito, muito difícil. Mas também havia
luz; uns raios de sol entrando pelas janelas quebradas; uns sorrisos aqui e ali
e ainda uma força capaz de reconstruir.
Sabemos que
temos um longo caminho pela frente, que o voto pode mudar tudo, que a vida se
refaz, apesar dos desumanos. Nunca mais seremos os mesmos, ao menos as pessoas
de bem. E de certa forma isso é muito bom. Sonhar é ótimo, mas despertar para a
realidade é melhor, mesmo que seja doloroso.