Aposta no jogo
Tempos atrás dirigia um jornal que disputava mercado contra um concorrente poderoso. Criamos várias editorias, melhoramos os serviços de anúncios classificados, até que um dos editores me fez uma sugestão interessante: — Por que não publicar o resultado do jogo do bicho? É uma prática brasileira, quase legalizada e já absorvida pela sociedade.
Gostei do argumento e procurei o advogado do jornal para saber se haveria
problema jurídico. “Nenhum, ele me respondeu. A contravenção é a prática de uma
loteria ilegal. Noticiar que ela existe não é crime.” — Certeza? — Absoluta.
Estabelecemos contato com o principal bicheiro de Brasília, explicamos os
nossos objetivos e, devo dizer, fomos muito bem recebidos. Foi criada a coluna
chamada Escreveram no poste, que, na realidade, era uma sequência de números.
Quem conhece o jogo do bicho sabe que os cinco primeiros prêmios são sorteados
e dois outros resultam de uma complicada matemática entre os números.
A partir dos nossos entendimentos, a redação do jornal passou a receber todos
os dias, por volta das 15h, o resultado dessa loteria. Chegava por um portador
discretíssimo, que entregava o resultado e desaparecia rapidamente. Funcionou
muito bem, melhorou a venda do jornal e fez a felicidade de diversos
acertadores. É um jogo simpático que aceita apostas baratas, simples, ou de
maior valor, mais sofisticadas.
Um amigo meu, tempos atrás, acertou o milhar, prêmio mais elevado, numa loteria
em Petrópolis, a cidade agora destruída pelas águas de verão. O banqueiro não
tinha recursos para pagar o prêmio. Chamou o acertador para o acordo. Pagou em
seis prestações mensais e sucessivas. Quitou toda a dívida e ainda adicionou os
juros. Ou seja, banqueiro de bicho paga em qualquer circunstância. O jogo foi
inventado pelo Barão de Drummond com objetivo de melhorar a receita do seu
Jardim Zoológico em Vila Isabel, no Rio de Janeiro.
Mas, voltando ao jornal, publicamos durante meses a coluna “Escreveram no
poste” até que um dia apareceu na minha sala, na redação, um delegado de
Polícia. Ele se apresentou, mostrou suas credenciais e me perguntou o que
significava a coluna “Escreveram no poste”, que só continha números e nenhuma
palavra. Ele disse que a combinação de números poderia ser alguma espécie de
senha para auxiliar guerrilheiros nas cidades ou no sul do Pará (estávamos no
período de governo militar e o jornal já tinha sido alvo de atentado à bomba).
Não respondi nada. O delegado avisou que voltaria no dia seguinte e gostaria de
receber informações melhores.
Retornei ao advogado, narrei o ocorrido e ele me tranquilizou. “Pode dizer que
é resultado do jogo do bicho. Não há nenhum prejuízo para o jornal.” O delegado
voltou e fez a mesma pergunta. “Sobre o que trata a coluna Escreveram no
poste?”. Disse: Jogo do bicho.
— Tem certeza? — Tenho. Agradeceu e saiu. Não fez ameaças, nem informou o que faria após receber a
informação. Mas a partir do dia seguinte nunca mais o jornal recebeu o
resultado do jogo do bicho. Voltamos ao bicheiro chefe no Distrito Federal para
saber o que tinha acontecido. Ele foi direto: “Você disse para a Polícia que
estava publicando o resultado do bicho. Então, eles consideraram que o jogo
estava legalizado. Elevaram a comissão. Melhor continuar a divulgar só no
poste.” O jornal nunca mais publicou a coluna “Escreveram no poste”.
Essa história serve para discutir a aprovação, nesta semana, do projeto de lei
que legaliza o jogo no Brasil. A presidência da Câmara trabalhou na surdina,
colocou o texto para ser votado na antevéspera do carnaval. Contornou a
oposição. E a votação ocorreu na mesma noite da invasão da Ucrânia. Um fato
abafou o outro. Os jogos de azar foram proibidos no Brasil, em 1946, no governo
do presidente Eurico Gaspar Dutra, porque sua mulher, D. Carmela, achava que a
atividade provocava vícios, destruía a família, a moral e os bons costumes. No
país, na época, funcionavam 71 cassinos que empregavam cerca de 60 mil
pessoas.
Hoje, ao arrepio da lei, há jogos em Brasília em casas especializadas, casas
clandestinas, cassinos de todos os tipos e tamanhos. E em todo o Brasil. Até
pela internet. As polícias têm plena noção dessa atividade. Além disso,
brasileiros viajam para jogar no Uruguai, no Paraguai, na Argentina, em Aruba
ou em Las Vegas. O dinheiro verde e amarelo sustenta artistas e paga impostos
naquelas localidades. O jogo existe. É melhor lidar com a realidade em vez de
admitir limites da temperança religiosa, que restringe o mercado nacional de
músicos e artistas e eleva a arrecadação de tributos dos países vizinhos.