Frase comum e, em
certo sentido, até um hábito é de que, no Brasil, "o ano só começa após o
carnaval". E, se não temos carnaval, significa que, sim, estamos vivendo
um limbo em que não começaremos o ano.
O Feitiço do Tempo,
filme que marcou tantas sessões da tarde tem sido também lembrado para explicar
a vida de tantos, que, desde o início do isolamento, em 2020, vivem dias em que
não se sabe ao certo como será o próximo dia, mês, ano, e, ao mesmo tempo, se
vive roteiro interminável de desolação. Esse roteiro, ao mesmo tempo que parece
novo, com elementos pandêmicos, de golpe, de militares em cargos de gestão da
máquina pública, também não se apresenta inédito.
Por isso mesmo, nessas
palavras buscamos alguma conexão, algum sentido ao que vivemos, em nome do
carnaval sem carne (na terra onde a carne atinge preços altíssimos, sabendo
ainda que, para a população, a carne é cara e, para as elites, a "carne
mais barata do mercado é a carne negra"), sem "corpo-enredo",
sem hinos e desfiles, com marchinhas e escapulidos blocos que tomam pedacinhos
de cidade tentando existir e ocupar os espaços públicos com o que resta de
alegria alegórica.
No samba-enredo da
Beija Flor de 2018 se cantou: "O Pátria Amada por onde andarás, seus filhos
já não aguentam mais…". Como tantos outros, o hino questionador expõe um
Brasil popular, atento ao sofrimento do país. Brasil este que como se percebe
no decorrer de nossa colonial trajetória histórica, quando se coloca,
minimamente, pela população sofre golpes. E, se não são internos, são externos,
como se percebe na guerra em andamento entre Rússia e Ucrânia, em uma
movimentação internacional de desestabilização de um governo que se apresentava
atrelado a interesses de um capitalismo de Estado. Não, também não serve ao
capitalismo neoliberal o capitalismo de Estado.
Que diferença há neste
limbo que nos prende em uma circunstância de governo descomprometido com
demandas de desenvolvimento social, econômico e político para boa parte da
população, de relações de trabalho precarizadas, da exploração do trabalho e
das pessoas pelas pessoas, em um país que oprimiu seus filhos em cada etapa de
sua história. "Sofri nos braços de um capataz,/ Morri nos canaviais onde
se plantava gente", cantou em samba-enredo a Tuiuti.
Mais antigo e,
ressoado por tantos, por tanto tempo, com a Imperatriz :"Liberdade,
Liberdade, abre as asas sobre nós, e que a voz da igualdade seja sempre a nossa
voz", que delícia poder abrir os braços e cantar, girar nas ruas, nos
salões entoando a liberdade. Nem isso, "Pátria Amada", podemos mais.
Como começaremos nosso ano?
Mas, a questão que
trazemos aqui é: será que já começamos algum? Sabemos que é possível, sim, pois
a Mocidade Independente ensinou, "a mão que faz a bomba, faz o
samba". Mas é preciso que as mãos estejam ocupadas trabalhando, forjando,
outra perspectiva de ação comum, de cuidado com o mundo. E, para isso, não se
pode ignorar os processos de exploração, nas diferentes escalas, dos indivíduos
à macropolítica, à geopolítica. É preciso considerar "A história que a
história não conta,/ O avesso do mesmo lugar,/ Na luta é que a gente se
encontra".
Considerar a história
do Brasil, agentes, inclusive do pensamento, da academia, os que de fato
comprometidos em compreender as mazelas, sem desconsiderar as articulações
internacionais que nos colocam como explorados, uma elite que dá as mãos a
interesses do capital sempre agressivos, violentos, para enxergar a
profundidade dos processos em que estamos inseridos, processos que nos deixam
isolados, ajoelhados perante um cotidiano massacrante de trabalho abusivo que
nos impede de refletir, reagir, e repensar a vida que queremos. "Brasil, o
teu nome é Dandara", sim, e que não nos enganemos, é preciso uma
guerreira, pessoas que lutem, "chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins,
Marielles, malês". Versos da Mangueira que nos apoiam a acordar, porque a
trajetória é longa e de muitas dificuldades e dores. Porque o fato é "Teu
livro eu não sei ler, Brasil", e não sabemos porque temos nossas vistas
obstruídas por narrativas, estruturas, instituições que nos diminuem, nos afastam,
e nos oprimem.
Mas, se juntos
ouvirmos vozes que cantam, o que cantam, o que nos dizem, nossos
"corpo-enredos vão pedir carnaval", e as festas voltarão a existir de
verdade, "os corpos serão templos, para as nossas festas pagãs".