No impressionante filme Para sempre Alice, a
personagem principal, uma mulher com Alzheimer precoce, traça uma rota de fuga
dos próprios esquecimentos escrevendo bilhetes-guia para quando a memória só
tiver pontas soltas. Uma estratégia para ligar os pontos de seu cotidiano de
forma independente. Ter memória é de certa forma um jogo de liga-pontos, uma
leva a outra.
Desde a semana passada, ligo os pontos de uma
trajetória singular, que tenho acompanhado de perto há mais de duas décadas.
Brasília e o Correio Braziliense proporcionam, não só a mim, mas a tantos
leitores, uma memória coletiva, que se transformam em história, biografia,
trajetória, como queiram.
Pelos 62 anos que caminham juntos, um jornal e uma
cidade formam um elo indissolúvel. Corrente. Em especial, quando repercutem na
vida das pessoas. Hoje, quero relembrar registros e campanhas, que viraram
solidariedade, ativismo, ação, transformação, mudança mesmo.
A título de curiosidade, nosso Cedoc encontrou
achados de tempos remotos, quando a coluna do leitor revelava reclamações um
tanto prosaicas. Por exemplo: “Não se justifica que numa cidade com todos os
recursos da técnica moderna, seus moradores tenham o sono cortado por onda
perturbadora de mosquitos”.
Ou: “Um vizinho montou um galinheiro em frente à
entrada onde mora, na 412”. Ainda: “O lambretista abusado que quase mata o
menor e ainda vai à casa do pai pedir que o menino não brinque na porta de
casa”. Até hoje, o Correio registra na sua coluna, Grita Geral, as reclamações
dos leitores — bem menos excêntricas, é verdade.
Além disso, o Correio ativou, sozinho ou em
conjunto com o governo ou entidades da sociedade civil, muitas e muitas
campanhas. Foi militante incansável pela faixa de pedestres e pela paz no
trânsito — os mais velhos podem contar às novas gerações sobre a histórica passeata,
as incontáveis capas de jornal exigindo justiça pelas mortes no trânsito.
Podemos dizer que choramos muitas vidas, ao lado de famílias dilaceradas, mas
salvamos outras tantas, com a redução histórica das mortes no trânsito.
Ajudamos a evitar barreiras no Eixão e incontáveis
mudanças esdrúxulas de destinação de áreas que favoreceriam a especulação
imobiliária em detrimento de nosso patrimônio cultural. Sem falar na campanha
contra o 14º salário dos distritais e contra os gazeteiros; o projeto Cidade Limpa;
tantos crimes que o Correio engrossou o grito por solução e justiças.
Mesmo com tantas mudanças no jornalismo nos últimos
anos, em que a produção de informação é hoje compartilhada e o risco de fake
news é tamanho, entendemos que a vocação de um jornal é estar ao lado de sua
cidade — para relatar, analisar, transformar e, por que não, resgatar as suas
memórias.