Quem ama, cuida
Sempre fico comovido a cada aniversário de Brasília
porque a construção e a constituição dessa cidade só foi possível pela luta, o
suor, a tenacidade e o idealismo. Mesmo considerando que a cidade-utópica viva
o período mais distópico da sua história, temos conquistas importantes a
celebrar. Brasília foi a primeira cidade moderna a ser tombada como patrimônio
cultural da humanidade em 1987.
Aos trancos e barrancos, Brasília cumpriu as
missões históricas para as quais foi criada: estabelecer as conexões entre os
múltiplos brasis, interiorizar o desenvolvimento e promover o rebrasileiramento
do Brasil. Aqui misturarmos sabores, cores, falares, músicas, corpos e almas.
Brasília é a mais brasileira das cidades brasileiras.
Nos anos 1970, Clarice Lispector visitou a cidade e
registrou a presença de árvores mirradas que pareciam de plástico. Eu gostaria
que ela voltasse a Brasília na passagem dos 62 anos. As árvores floresceram e o
que era um risco de Lucio Costa se transformou em uma cidade-parque plena, que
ameniza a aridez de algumas estações, promove o equilíbrio ambiental e atrai
uma legião de pássaros. Em Brasília, é possível orientar-se por um calendário
floral; é possível administrar o tempo pela floração das árvores.
A utopia brasiliana é cultural. A beleza de
Brasília não é uma qualquer para decorar, enfeitar ou compor um cenário para o
poder. É a de uma cidade-monumento, cidade-símbolo, cidade-totem da
brasilidade. Não podemos permitir que a anti-Brasília prevaleça sobre Brasília
e que o anti-Brasil prepondere sobre o Brasil.
É preciso zelar pelas conquistas e projetar um
futuro para as próximas gerações. Não será obra solitária de nenhum heroi
clamando no deserto. É uma tarefa para todos os que amam essa cidade: governantes,
Câmara Distrital, Ministério Público, Judiciário, Institutos dos Arquitetos do
Brasil – Seção DF, Iphan, Universidade de Brasília e os cidadãos em geral.
Ninguém pode se omitir, pois, como diz o padre Antonio Vieira, a omissão é o
pecado que se faz não se fazendo.
Não se trata de uma questão de direita ou de
esquerda. Governantes de diferentes matizes ideológicos cometeram erros crassos
em relação à escala bucólica da cidade. Ela é sagrada, é um patrimônio de todos
e não pode ser ferida, sob o risco de comprometer a qualidade de vida dos
brasilienses: “Ao contrário das cidades que se conformam e se ajustam à
paisagem, no cerrado deserto de encontro a um céu imenso, como em pleno mar, a
cidade criava a paisagem”, escreveu Lucio Costa.
A escolha de Lucio Costa é de extrema delicadeza.
Isso fica também evidente, por exemplo, na 402 Norte, com os edifícios do Banco
do Brasil, que turvam a visibilidade celeste como se a gente estivesse em uma
cidade convencional. Eles quase que apagaram o céu. O vazio brasiliense não é
um valor negativo; não se presta a ser inundado por edifícios ou viadutos.
Foi concebido como um valor lírico que permite aos
cidadãos a contemplação do espaço durante as 24 horas do dia. Atulhar a cidade
com prédios e viadutos significa destruir Brasília no que ela tem de mais
singular e precioso. É preciso mais cuidado com a arborização, principalmente
em um cenário de aquecimento global.
O caso do anel rodoviário no Sudoeste desperta
inquietação. Recentemente, próximo ao Estádio Mané Garrincha e aos tribunais
derrubaram árvores e fizeram cercas. Que Brasília legaremos a nossos filhos e a
nossos netos? Uma cidade-parque ou uma cidade-viaduto? Quem ama, cuida.