Num cenário de recrudescimento das mazelas sociais,
a dor do outro pode se tornar insuportável diante das urgências cotidianas.
Entretanto, há quem não se permita desviar o olhar das necessidades alheias e,
mais do que isso, escolhe a empatia e o exercício de acolhida como profissão e
objetivo de vida. É o caso da psiquiatra Kyola Vale, 58 anos, servidora do
Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib), que recebeu em meados de março o
prêmio Marielle Franco, como servidora ativista pelos direitos humanos, da
Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF).
Há 15 anos, a médica atende, de maneira humanizada,
pessoas que se acostumaram com a hostilidade social: mulheres em situação de
vulnerabilidade, população LGBTQIA+ e autistas. Uma escolha profissional
pautada em valores que são óbvios para Kyola. “Eu não faço nada demais, mas sim
aquilo que é dever e compromisso do servidor público. Ele está ali em função do
estado, com o objetivo de cuidar e amparar. Há um número significativo de
pessoas que estão nessa empreitada comigo, e que tem uma postura semelhante.
Não estou sozinha. Na verdade, eu represento um grande público de servidores
que se importam com essas causas”, garante a psiquiatra, ainda admirada com a
premiação.
Olhando para dentro: Ela conta que o interesse
pelos direitos humanos surgiu quando ela teve contato com a medicina tropical —
ramo que compreende as doenças infecciosas e parasitárias e que atinge mais
áreas de clima tropical, onde a transmissão é facilitada pelas baixas condições
sócio-econômicas.”Trabalhava com alguns professores, em uma grande área na
Bahia, que era endêmica de Leishmaniose. Muito do que está impresso em mim, tem
relação com o que vivi nessa época. Me fez conhecer o Brasil de verdade, eu conhecia
o exterior, mas não o interior”, pontua.
No final do curso de medicina, surgiu o interesse
pela psicanálise. “A questão mental começou a me chamar atenção. Fui fazer meu
treinamento de saúde mental no Hospital de Base e passei a ter contato com diferentes
casos. Após isso, fiquei um bom tempo por conta de cursos de psicanálise e,
hoje em dia, voltei meu olhar para os direitos humanos. Agora meus cursos são
apenas sobre isso”, explica. Apesar do olhar profissional, ela diz que a
temática não é um objeto frio de trabalho. “A minha área pede que eu vá mais
além, que procure por mais. Foi quando entrei no mundo dos direitos humanos,
passei a entender mais dos problemas que via e enfrentava nas salas dos
hospitais”, diz.
Violência real: Escutar e acolher. Esses são
os dois princípios que movem e definem a relação de Kyola com o sistema de
saúde do DF. Ela conta que após ingressar na Secretaria de Saúde, passou a ter
contato com diferentes casos de pessoas que sofriam violações de direitos. “À
medida que eu ia me aproximando da pauta, vi que os números só crescem, em
especial no assunto de violência contra a mulher. Isso me chamou a atenção e
fui atrás de cursos, de estudo”, recorda.
Da violência contra a mulher, a psiquiatra passou a
ter contato com casos de LGBTFobia. “No pronto socorro, apareciam pessoas que
tinham tentado suicídio, por preconceito, rejeição da família. Outras vezes
surgiam pessoas espancadas. Foi quando a pauta me convocou e não consegui mais
focar em outra coisa que não fosse ajudar essas pessoas”, explica.
Com a experiência da escuta acolhedora, Kyola
ampliou sua atuação para além do expediente de trabalho e estudo. “Quem
trabalha com essas pautas, não pode ficar preso em consultório. Precisamos nos
envolver, participar de movimentos sociais, escutar demandas. Eu sou aquela
pessoa que tem um otimismo esperançoso, e vamos tentar fazer diferente.
Enquanto outros não fazem, eu faço onde estou, com o apoio de colegas e da
minha direção”, diz.
Foi a vivência que mudou a maneira como a
psiquiatra enfrenta temas difíceis. “No caso do sistema socioeducativo, a
impressão de senso comum, muitas vezes, é que os jovens são psicopatas, quando
na verdade é gente comum. São histórias distantes de nós, mas que precisamos
interagir e nos envolver”, diz. “A gente visita uma série de questões,
propósitos. Minha vida é igual à de todo mundo, mas não tem espaço para ficar
sequestrada em temas dramáticos. Eu sou convidada, o tempo todo, a intervir e
aferir esses temas”, ressalta.
Apesar da força de espírito, a profissional revela
que, certas histórias, são muito impactantes. Para lidar com tantas emoções,
ela compartilha algumas reflexões no blog A estética do sofrimento. “Pinto
aquarelas e escrevo crônicas porque, apesar de rir muito, o impacto das dores
dessas pessoas sobre mim é pesado. Quando atendo uma pessoa jovem estuprada, um
homem trans, eu costumo sair devastada. Até porque, a doutora também é humana”,
diz.
Ainda assim, Kyola garante que deseja continuar
nesse papel, como médica. “Quero me manter envolvida em movimentos, pautas
diversas para acionar uma rede. Esse é o meu lugar”, assegura.
Premiação: O Prêmio Marielle Franco de Direitos Humanos está na terceira edição. O reconhecimento é dedicado à atuação de defensores dos direitos humanos em diversas áreas. A iniciativa, além de prestigiar os selecionados, contribui para que mais pessoas, organizações e servidores se engajem nessa luta.