Eu fui vítima do
talento do escritor gaúcho-brasiliense Lourenço Cazarré. Servi de inspiração
para a criação de Severiano Severo, o personagem-protagonista da novela A
fabulosa morte do professor de português (Autêntica), dirigida
especialmente ao público infantojuvenil, que fez muito sucesso, com milhares de
exemplares vendidos.
Nos anos 1980 e 1990, inspirado pelos ídolos da
juventude Oswald de Andrade, Paulo Francis, Mario Faustino e Torquato Neto, eu
descia o sarrafo, instalado na condição de crítico. Adotei o lema de Faustino:
“Piedade matou minhas ninfas”.
Ao ler a narrativa infantojuvenil A fabulosa morte
do professor de português, pensei em entrar com um processo para cobrar
direitos autorais. Com muita verve, Cazarré reconstitui, de forma satírica e
sarcástica, muitos episódios de minhas aventuras e desventuras de crítico literário
da taba. A minha família, os meus amigos, os meus inimigos e eu nos divertimos
muito.
Sim, porque Cazarré tem senso de humor gaúcho
apurado. Sabe transformar cacos desconexos de histórias em uma ficções
interessantes. Agora, no último livro, a coletânea de contos Exercícios
espirituais para insônia e incerteza (Editora Insular), o nosso mestre da
medicina chinesa, professor Woo, que coordena o famoso tai chi na Entrequadra
104/105 Norte, teve melhor tratamento.
Woo é personagem coadjuvante do conto Pai,
tu tá virando peixe, protagonizado por um homem apaixonado, de maneira
obsessiva, pelas piscinas. Depois de uma das sessões de natação, o homem fica
com o corpo todo travado e procura o doutor Woo. Com o instinto do essencial, o
mestre bota o dedo na causa da enfermidade: “Corpo bom, mas tenso” – disse o
doutor Woo. “Foi magro muito tempo faz”.
Woo aplica as agulhas nos pontos de energia, liga
uma maquininha e destrava o corpo do nosso personagem. Ele chegou dizendo que
havia se “rendido à feitiçaria”, mas percebe que queimou a língua e sai grato
ao mestre da medicina chinesa pela dádiva: “Senhor precisa é nadar piscina. Se
nada, não volta casa chinês”, adverte o mestre.
Cazarré reconhece que a parte do doutor Woo é muito
autobiográfica. Sempre gostou de nadar, mas é um péssimo atleta porque aprendeu
nos tempos de guri, dando porrada nos rios de Pelotas. Considera que nada como
um prego. Foi o último frequentador das piscinas do Clube de Imprensa, de
tantas memórias agradáveis. Certo dia, travou o corpo, marcou uma consulta e
foi salvo pelo doutor Woo
Não anteciparei o final do conto O homem
que virou peixe. Em troca, reproduzo trecho de uma autobiografia escrita
pelo próprio Cazarré: “Nada é mais difícil para um escritor do que tentar
escrever uma autobiografia, mesmo que resumida. A inclinação natural para a
mentira e para o exagero dos contadores de história é algo que só se aprofunda,
com o passar do tempo. Eu, por exemplo, me sinto inclinado a dizer que nasci na
Rússia, no século 19, e que fui amigo de três sujeitos: o conde Leão Tólstoi, o
doutor Antônio Tchecov e aquele cara esquisito que tinha um sobrenome ainda
mais estranho: Gogol.”
Na verdade, Cazarré é gaúcho de Pelotas, mora em
Brasília desde trabalhou muitos anos como jornalista e ganhou os principais
prêmios de literatura do país. Ele resume assim o seu projeto literário para os
jovens. ” Tento fugir desesperadamente da chatice”. Deu certo: ele ganhou os
principais prêmios literários do país e seus livros são lidos por milhares de
adolescentes.