Uma vez perguntei a uma
psicanalista o que era o amor e ela me respondeu que ninguém dava conta de
definir o amor, nem a psicanálise (que, grosso modo, explica o amor como uma
projeção narcísica). É a literatura, disse a minha amiga analista, quem mais se
aproxima da intensidade volátil, às vezes cruel, raras vezes mansa, disso que
se pode chamar de sentimento amoroso mas que, tenho em mim, é muito mais que um
gostar exagerado por alguém. O amor, dependendo de quem ama, altera o estado de
consciência e pode te arremessar o sujeito para bem longe do que conseguimos
identificar como sendo a realidade.
Na Idade Média, o amor era tido
como uma doença do pensamento – pobre daquele que se deixasse capturar pela
beleza de uma donzela nas ruas estreitas e tortuosas das cidades medievais.
Estava condenado a padecer de todos os males do amor: taquicardia, frio na
barriga, sudorese, perda de apetite, pensamentos obsessivos, enlevos
paralisantes, ciúmes apopléticos, saudades tempestuosas. Uma doença, um estado
de loucura do corpo e da alma.
Um artista genial dos tempos
modernos conta como se apaixonou de modo avassalador (há outro modo?) quando
viu pela primeira vez a mulher a quem amaria pro resto da vida:
“Ela me apareceu em Cadaques
(Espanha) acompanhando o marido, Paul Éluard (poeta francês). Na segunda manhã
depois da chegada de meus amigos, louco de desejo por ela e a fim de atrair seu
olhar, eu raspei as axilas e pintei-as de azul, cortei a camisa, lambuzei-me de
cola de peixe e excremento de cabra, enfeitei o pescoço com um colar de pérolas
e as orelhas com um jasmim. Quando a encontrei, não lhe pude falar, sacudido
por um riso, demente, cataclismo, fanatismo, abismo, terror.”
Foi assim que Salvador Dali
conheceu e conquistou Gala — sendo Salvador Dali.
No dia seguinte a essa atordoante
performance surrealista, Gala tomou o jovem pintor pela mão (ela era dez anos
mais velha que ele) e lhe disse, gravemente: “Querido, não vamos mais nos
deixar”. E assim foi, Gala largou o poeta francês e ficou com o pintor catalão.
“Ela foi minha Gravida¹, quem cura os terrores, a conquistadora de meus
delírios, a amante que atrai minhas forças verticais… Gali é ainda uma Esfinge,
mas que me vem em socorro; que em vez de me interrogar, interroga por mim os
enigmas e guarda em sua carne as respostas”.
Dali diz que se curou dos traumas
mais fundos de infância, os relacionados ao pai, com o amor de Gala. E a partir
de uma pinta: “… vou descrever minha paixão a partir de um ponto minúsculo do
corpo de minha mulher: um sinal. Esse sinal, que se encontra no lóbulo da
orelha esquerda de Gala, é o lugar de concentração da minha vida afetiva
dominada pelo drama de meu pai”.
O pai de Dali, também Salvador
Dali, era um advogado de classe média severo, intransigente e dominador, e que
não aceitava o casamento do filho com uma mulher anteriormente casada,
sexualmente livre e (na cabeça do pai) viciada em drogas. Dali rompe com
Dali, o pai que exercia um domínio poderoso sobre o filho. E se liberta e se
salva.
É no sinal no lóbulo da orelha de
Gala que Dali concentra, simbolicamente, o trauma do pai castrador e a quem
muito amava e de quem recebeu muito amor. É no desafio de romper com o pai para
ficar com a mulher amada que Dali se separa do Dali pai para ser seu próprio
Salvador Dali.
Todas essas citações foram
retiradas de As paixões segundo Dali, livro que resultou de uma
conversa do surrealista com Louis Pauwels (jornalista francês). É uma leitura
arrebatadora do começo ao fim. É preciso parar, tomar fôlego, olhar na janela,
tomar um café, para depois retomar a leitura. É como se o leitor estivesse ido
a uma festa íntima dentro da cabeça extraordinária, absurdamente franca, do
catalão que amava rinocerontes e sabia amar as mulheres (ou a mulher) com a
mesma ferocidade e com uma lucidez arrepiante.