Com a internet, as informações viajam com uma velocidade vertiginosa e
nos deixam atônitos. Confesso que não consigo acompanhar tudo que me mandam. No
ano passado, ocorreu um apagão nas redes sociais e uma representante da
vanguarda do atraso fez uma ameaça apocalíptica para defender o voto impresso:
“Já pensou se isso ocorre durante a eleição com urnas eletrônicas?”.
Se fosse verdadeira a lógica da moça, teríamos de renunciar aos aviões a
jato e nos movermos de carroça, pois sempre haveria o risco de uma pane. Eu
estava devaneando, erraticamente, sobre essas questões quando recebi um vídeo
produzido pelo Instituto Moreira Salles sobre o marceneiro Jaime
Vilaseca.
Ele se envolveu e se viu envolvido em um lance de acaso e mistério. Foi
chamado para construir uma estante de livros para Clarice Lispector. Ela ficava
calada quase o todo tempo, sempre observando o movimento.
No entanto, em um átimo, disse para o marceneiro que ele estava fadado a fazer molduras de quadros. Jaime ficou assustado, achou engraçado e reagiu com descrença. Considerou o vaticínio completamente absurdo, destituído de qualquer fundamento. Todavia, Clarice fez umas encomendas e, logo em seguida, o levou a um encontro com vários artistas plásticos.
Jaime iniciou um convívio com artistas, se tornou um aprendiz e depois
um mestre das molduras muito requisitado. A profecia de Clarice, uma mulher de
radares de sensibilidade poderosos, se cumpriu fielmente. Além disso, me chamou
a atenção uma história contada por Jaime, que se transformou no belíssimo conto
O primeiro beijo, narrativa ficcional no limiar da poesia.
Tenho muita curiosidade sobre a gênese das canções, dos poemas, dos
romances, dos filmes e dos contos. Vamos à história. Jaime viajava com o pai
numa subida de serra para Niterói quando o carro aqueceu muito e tiveram de
parar em um acostamento. Hoje, é mais raro um carro, razoavelmente novo,
apresentar problema mecânico, mas, naquela época, era muito comum.
O então adolescente sentiu uma sede terrível e buscou, desesperadamente,
água para se saciar. Jaime contou a história para Clarice e ela recriou tudo no
conto. Acompanhemos a narrativa sob o olhar de Clarice: “O instinto animal
dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos
estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou,
todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de
pedra, antes de todos.”
E continua: “De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os
ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu,
escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou
todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos. Abriu-os
e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a
estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se
de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais
frio do que a água.”
Olhou para a estátua nua. Ele a havia beijado: “Até que, vinda da profundeza do seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele... Ele se tornara homem.”