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Crônica: Essa tal felicidade

Essa tal felicidade

 

“Você é feliz?”, perguntaria o pesquisador de prancheta na mão, na busca de decifrar o que, segundo Freud, seria uma utopia ou, de acordo com Nietzsche, um sentimento frágil e volátil. Não sei você, que lê esse texto, mas o brasileiro está bem mais infeliz do que na medição anterior, segundo pesquisa que as Nações Unidas fazem anualmente para medir a felicidade pelo planeta, a partir de um conceito materialista e pragmático.

O chinês Confúcio ligava a felicidade à harmonia entre as pessoas, o grego Epicuro disse que era a satisfação dos desejos; o goiano Odair José cantou que “felicidade não existe, o que existe são momentos felizes” (a música é do Donizete, mas foi ele quem gravou).

Mais uma vez o país mais feliz do mundo, segundo a ONU, é a Finlândia, um exemplo de eficiência – mas é isso mesmo? Ok, tudo funciona na Finlândia: os políticos não corruptos, o sistema de saúde é impecável, ninguém passa fome e eles se divertem a valer fazendo um negócio que se chama kalsarikännit, talvez o segredo deles.

Esse calçaricânit (vamos aportuguesar o termo) é o hábito difundido em todo o país escandinavo de ficar em casa, enchendo a cara, só de cueca. Que felicidade!

Para a ONU, felicidade é água tratada, esgoto, trem que não atrasa, e frio, muito frio. Os três primeiros colocados são países que vivem abaixo de zero – Dinamarca e Islândia são os demais – e movidos a álcool. Etílico. Finlandeses bebem bem mais que brasileiros e até que escoceses, que inventaram a cachaça e o whisky.

Mas há algo errado nessa listagem. Vamos ser radicais: o índice de suicídios registrados no meio dessa felicidade finlandesa é de 13,5 pessoas por grupo de 100 mil; para comparar, no Brasil o índice é de 6,4. No Afeganistão, que seria o país mais infeliz do mundo, é de 6. No Líbano, que só ganha do Afeganistão na pesquisa, o índice é de 2,8.

O sentimento de felicidade é individual, mas sem dúvida transferível, tanto que podemos festejar momentos de felicidade coletiva. É assim que a felicidade alheia é também nossa, assim como a lembrança de momentos pessoais. Podemos ficar com várias definições, mas a poesia vem forte quando Drummond escreve que “ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade”.

As Nações Unidas, com seus especialistas de boinas azuis, podem colocar o Brasil em 49° lugar entre os países felizes; podem determinar que somos 11 posições mais tristes do que éramos há um ano. É problema deles.

Mas eles não determinam o que cada um de nós sente, mesmo enfrentando a falta de conforto, a desigualdade, a corrupção dos poderosos, a disseminação das pequenas espertezas. A felicidade é um sentimento simples, que escapa com facilidade de quem não o abraça e se dedica a ele. “Não tenho tempo para mais nada, ser feliz me consome muito”, escreveu Adélia Prado. Shakespeare foi mais pragmático: ‘Sofremos muito com o pouco que nos falta e gozamos pouco o muito que temos”.

Que os finlandeses sejam felizes por lá e nós por aqui.


Paulo Pestana – Correio Braziliense




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