Morador da
Asa Sul há décadas, Márcio resolveu que era hora de mudar de ares e investiu em
uma casa num condomínio na área rural. Aposentado, não precisava ficar na
quadra que ele nem reconhecia mais, tantos eram os novos moradores, que
encheram as ruas internas de carros. E comprou uma casa num condomínio da área
rural.
Era tudo o
que queria. Tinha espaço para uma horta e principalmente para um galinheiro,
construído rapidamente com a ajuda do jardineiro e logo ocupado por oito
galinhas e um galo que, se não é um Berger cantor, também não era um pescoço
pelado. Tem porte, altivez e pisa firme como um soldado cossaco.
O galo foi
batizado como Manolete, uma homenagem ao velho toureiro espanhol, por causa do
andar ereto, garboso, por todo o quintal, ultrapassando os limites impostos
pela cerca do galinheiro. Dominou a área naquela poligamia que irradiava
felicidade.
Não era
exatamente uma vida no campo, mas era quase. E Márcio estava feliz como o galo
– mas só com uma esposa. Não sabia que teria uma batalha para enfrentar, porque
sempre há vizinhos.
Mudou-se
para a casa ao lado um inglês cheio de banca, daqueles que não carregam
embrulho, não falam com pobre e não dão mão a preto. Casado com brasileira, ele
passava o dia em casa, trabalhando à distância, sem cumprimentar ninguém.
A primeira
providência do sujeito foi levantar os muros da frente da casa e instalar no
quintal um poste com uma lâmpada LED que acende assim que escurece, proteção
extra para o muro dos fundos, que já tem cacos de vidro e fios eletrificados.
Manolete
perdeu a noção do tempo. Deu de cantar as duas, três da manhã, ou a qualquer
hora que abria os olhos e via a luz do poste acesa. Sabe-se que galo canta para
demonstrar que é o dono do pedaço e faz isso logo cedo para mostrar que está
vivo.
E ele tem
canto forte; incha o pescoço, fica com a crista ainda mais corada e solta a voz
com a disposição de um tenor dramático interpretando Radamés, na Aida, de
Verdi.
Um dia,
Márcio recebeu um oficial de Justiça na porta de casa. Estava sendo processado
pelo inglês porque o galo cantava fora de hora. Teve que constituir advogado –
por sorte um antigo colega do trabalho tinha montado banca – e providenciar a
defesa para manter Manolete em casa, até porque aquele era um condomínio em
área rural.
O advogado
preferiu não fazer gracinha e fez uma defesa sóbria, demonstrando que a culpa
era do querelante, que iluminou as noites do galo e confundiu o pobre animal
que, afinal, não tem relógio. O juiz foi sensível, deu ganho de causa a
Manolete, que pode voltar a cantar.
O inglês,
derrotado, pagou custas e ainda arcou com o estipêndio de um eletricista que
virou o foco da lâmpada para outro lado. Hoje o galo berra a vitória na hora
que tem que cantar, ao nascer do sol. Mas o inglês não mora mais lá.