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Brasília, sem romantismo

Brasília, sem romantismo. Sonho de JK, sonho de Dom Bosco, capital do futuro, nova capital da República. São muitos os termos românticos para se referir à jovem capital do maior país da América do Sul


Publicando diariamente desde 21 de abril de 1960, o Correio Braziliense é o maior contador de histórias da capital Federal. Integrante há pouco tempo do quadro de repórteres do jornal, — e na condição de forasteiro — resgatar a trajetória da cidade é sempre um desafio que dá prazer de enfrentar. A missão de resgate se intensifica durante o mês de abril, quando explode por todos os lados eventos festejando o aniversário de Brasília.


Durante os pouco mais de dois anos que as minhas palavras saem nas versões impressa e on-line do Correio, tive a oportunidade de conversar com muitos pioneiros, que guardam na caixola preciosas lembranças do tempo do gigantesco canteiro de obras daquilo que pode ser considerado a maior empreitada da humanidade no século passado.


Sonho de JK, sonho de Dom Bosco, capital do futuro, nova capital da República. São muitos os termos românticos para se referir à jovem capital do maior país da América do Sul. No entanto, alguns segredos podem estar guardados nas entrelinhas do quebra-cabeça de relatos dos pouco mais de seis décadas de existência. Em abril último, passei a prestar mais atenção em detalhes que talvez não convenha para alguns românticos mencionar.


Muitos dos antigos que tive a chance ímpar de ouvir contar as suas lembranças relataram a abundância de vida silvestre em Brasília. Um desses pioneiros me contou que não era raro avistar lobos-guarás, veados e, até mesmo, o cervo-do-pantanal nas redondezas da cidade. Onde foram parar?


Ameaçado de extinção pela caça predatória e pela perda de habitat, o maior cervídeo da América Latina é apenas mais um exemplo de toda a vida que foi enxotada dessa região. No site do Zoológico de Brasília, outra história dá mais pistas: um roedor foi varrido do mapa quando explodiram as rochas que havia no local onde hoje é ponto turístico.


As explosões tinham o objetivo de produzir brita para a construção da cidade, ainda em 1957. Em meio aos escombros, encontraram os cadáveres dos ratinhos que foram batizados de Jucelinomys Candango, uma homenagem ao idealizador da coisa toda. Nunca mais o animal foi visto.


Quanto às vidas humanas, também é preciso lançar um olhar crítico. A primeira história que ouvi foi sobre o meu bisavô, o Vô Giló, quando ainda nem sabia que um dia viria a morar em Brasília. Ele foi um dos milhares que deixaram suas terras natais para conseguir uma vida melhor na cidade, então, em gestação. Das lembranças que familiares têm do que vovô contava, o candango piauiense foi forçado a retornar para casa. Na viagem de volta, que durou três meses, gastou tudo que tinha juntado. Chegou como saiu.


A expulsão dos moradores da Vila do IAPI e a chacina do refeitório da Pacheco Fernandes são outras histórias que dão conta do descaso com os trabalhadores que fizeram o sonho de JK possível. No caso do refeitório, a história é tão mal contada, que nem há uma contagem oficial dos operários mortos por reivindicar alimentação digna.


Esses parágrafos que aqui escrevo não têm o objetivo de diminuir ou desmoralizar a cidade que escolhi há 11 anos para viver. Contudo, "é cobrando o que fomos, que nós iremos crescer", como diz a canção O que foi feito de Vera, de Milton Nascimento. Todos esses aspectos da nossa história devem ser revistos. É um movimento fundamental para alcançarmos um futuro de bem-estar e justiça, também celebrando os sonhos de JK e Dom Bosco e as genialidades de Oscar Niemeyer, Athos Bulcão, Darcy Ribeiro e Lúcio Costa.


Naum Jiló – Foto: Ed Alves -CB - Correio Braziliense




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