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Crônica: E isso faz sentido?

E isso faz sentido?

“Vou chegando”, nos disse o rapaz, levantando da cadeira onde estava há mais de hora, conversando fiado, tomando um negocinho. O senhor E, ex-professor de português, defensor da última flor do Lácio, polemista, não deixou por menos: “Chegar você chegou antes, agora você vai embora. E aproveitando o ensejo: gente não vaza; exceto no banheiro”.

Claro que era uma brincadeira, mas é assim que nascem os papos de botequim. E as expressões e chistes idiomáticos serviram de motivo para mais uma rodada. Algumas dessas frases são obvias, outras mais enigmáticas; umas surgem a partir de piadas, outras da alta literatura. E, não se sabe como, são integradas ao uso comum.

Alguém dizer que abandou o barco, mesmo num lugar seco, é facilmente compreensível. Saiu fora, escafedeu-se. Quando se diz que não se deve “cutucar a onça com vara curta” entende-se que é algo arriscado, mas o que nem todos sabem é que o felino só entrou na sentença colateralmente.

O bicho seria D. Carlota Joaquina, mulher de D. João VI, irascível, e apelidada pelos serviçais de Dona Onça. Hoje o risco é maior e perigoso mesmo é “mamar em onça”; nada a ver com a imperatriz. E o bicho continua no imaginário brasileiro.

Chamar outro de “amigo da onça” para dizer que é um “traíra” vem de uma velha história, na qual um sujeito mostrava como fazia para escapar de um felino enquanto o companheiro sempre encontrava um jeito de recolocar o animal como ameaça, até que o primeiro perguntou: “Você é meu amigo ou amigo da onça?”.

Como uma simples anedota vira uma expressão idiomática é um dos mistérios da língua. Mas há outros. Quase todo mundo entende quando se diz que alguém “abotoou o paletó” – morreu, feneceu, foi-se. O porquê da expressão não se sabe.

Mas para comprovar a criatividade da língua, há muitas outras expressões com o mesmo sentido, variando por regiões: “Assentar o cabelo, esticar as canelas, bater alcatra na terra ingrata, largar a casca, bater o 31 de roda”, são algumas delas. Essa última teria origem num velho jogo de cartas português em que o jogador tem que chegar o mais perto possível de 31 pontos. Se passar, morre.

Muitas expressões têm origem remota, externa e até cruel. Do alto de sua erudição, o professor E citou o exemplo de “ao pé da letra”, que é usada para explicar algo literal, e teria surgido a partir das torturas medievais quando pessoas tinham pés e mãos amarrados na tentativa de que dissessem a verdade – a verdade que o torturador queria ouvir, naturalmente.

Vamos voltar à vaca fria – que, aliás, é expressão francesa, trocando o vacum por caprinos, no caso carneiros que eram produto de furto que estava em julgamento no livro Farsa do Advogado Pathelin, de autor desconhecido. Depois de uma longa digressão do advogado de defesa, o juiz declarou: “revenons à nos moutons” (voltemos a esses carneiros) para retomar o caso.

Como carneiro virou vaca e de onde descobriram que eram frias é conversa para outra rodada.


Paulo Pestana – Correio Braziliense 




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