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Tragédia inaceitável

Tragédia inaceitável

 

Recentemente, fomos atingidos por 21 tragédias de feminicídio no DF. Oitenta e sete por cento das mulheres foram mortas por parceiros ou ex-parceiros. Com as mortes das mães, mais de 300 crianças ficaram órfãs. Mesmo em sua frieza, os números permitem imaginar o rastro de destruição, de traumas, de desagregação existencial e de desestruturação familiar provocados por esse flagelo.

 

Em 2015, as estatísticas policiais não registraram nenhum caso de feminicídio. E a razão para a falsa utopia é que, só depois dessa data, com a criação da Lei Maria da Penha, os crimes de morte contra as mulheres ganharam a caracterização de feminicídio, essencial na luta pelos direitos das mulheres. É a prova mais cabal de que não adianta jogar o problema embaixo do tapete, precisamos encará-lo com coragem.

 

Alguns utilizam a expressão epidemia para caracterizar a disseminação e banalização do feminicídio. Mas a definição é inaceitável pelo conformismo que ela encerra, como se fosse uma força da natureza incontrolável. Como eliminar ou reduzir a covardia contra as mulheres? A resposta não é fácil, mas, durante o seminário promovido pelo Correio, sob o impacto das últimas tragédias, foram levantadas questões relevantes para o enfrentamento do enorme desafio.

 

Tentarei ressaltar alguns pontos. Em primeiro lugar, o problema é complexo, não pode ser resolvido apenas pela polícia, o Ministério Público ou o Judiciário. O enfrentamento tem que se dar em múltiplas frentes com políticas públicas transversais, que passem pela prevenção da violência, da mutação dos valores, da melhoria das condições de vulnerabilidade social, da consciência dos direitos. Nos últimos quatro anos, foram reservados os menores orçamentos para o combate ao feminicídio. As políticas públicas para a proteção das mulheres deveriam ser de Estado, não de governo.

 

É preciso mobilizar a educação, mudar a mentalidade machista e patrimonialista dos homens, que consideram as mulheres propriedade particular. Quando elas adquirem autonomia e resolvem dizer não ou ir embora, eles consideram afronta à honra.


Além disso, a mudança de mentalidade deve envolver campanhas e a participação das famílias. Em segundo lugar, para que não sejam joguetes do desejo masculino, as mulheres precisam se conscientizar dos seus direitos. Só isso poderá conferir dignidade a elas.

 

Muitas vezes, não sabem que têm direitos, que podem denunciar, que podem requerer medidas protetivas de segurança pessoal ou de segurança econômica para a sua família no período de crise em que tiverem de abandonar a casa.

 

Um dos aspectos cruciais é o das medidas de protetivas. Observamos que várias mulheres denunciam as agressões, recebem medidas de proteção judicial e, mesmo assim, são assassinadas. Essa deveria ser uma prioridade do Judiciário, pois é o principal caminho de acesso à dignidade humana e aos direitos. Sem essa credibilidade como as mulheres, afetadas por situações de extrema vulnerabilidade, confiarão na Justiça para denunciar os seus parceiros?

 

A condição de vulnerabilidade afeta bastante as mulheres também quando tomam coragem para fazer denúncias nas delegacias, dirigidas, em grande parte, por homens dominados por valores machistas. Esse é outro campo a ser transformado. O Ministério Público e os governantes precisariam mudar os currículos dos cursos, a matéria dos concursos e os protocolos de atendimento para que as mulheres passassem a serem vistas sob um outro olhar, um olhar de respeito e de pessoa com direitos.

 

Como se vê, não será fácil combater o feminicídio. Mas o debate promovido pelo Correio foi um alento, pois mostra que existem no Ministério Público, no Judiciário e na sociedade civil, pessoas competentes e dignas, que realizam o enfrentamento e mapeiam as ações necessárias ao combate desse flagelo que fere nossa dignidade. É preciso o envolvimento de todos e debates como esse contribuem para a ampliação da consciência. Não podemos aceitar que a tragédia do feminicídio seja inserida na lista dos problemas insanáveis e insolúveis.


Severino Francisco  - Foto: Blog-Google – Correio Braziliense




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