Fui assistir ao filme Ângela, que retrata um recorte da vida e da morte de Ângela Diniz, assassinada por Doca Street em 1976, na véspera do ano-novo, na casa de praia dela, na Praia dos Ossos. Em um julgamento que decretou a segunda morte de Ângela, Doca Street, que a matou por não aceitar o fim do relacionamento, alegou a legítima defesa da honra, figura jurídica abolida somente este ano pelo Supremo Tribunal Federal.
A
despeito das críticas ao filme — aqui e ali, disseram que o erotismo se
sobrepõe ao feminicídio e que fez falta mostrar o circo de horrores que foi o
julgamento —, ativei minhas lembranças e também minha revolta, sempre à
espreita quando mulheres vítimas são julgadas e homens violentos têm sua
conduta criminosa justificada.
Eu
era adolescente quando o crime ocorreu. Lembro-me de ouvir as conversas em casa
e no noticiário. Fico feliz em constatar o quanto meus pais eram diferentes e
libertários, pois se indignavam com o rumo dos acontecimentos. Um Brasil
machista, representado por jurados machistas, que aceitou candidamente o
julgamento moral imposto a uma mulher morta e deixou seu algoz livre. Sempre
fez sentido a frase de Carlos Drummond de Andrade na época: “Essa moça continua
sendo morta todos os dias”.
O
playboy assassino foi julgado e pegou uma pena pífia, ficando livre da cadeia.
O caso fez surgir o movimento de mulheres feministas, que ficou conhecido pelo
slogan “Quem ama não mata”. Os tempos mudaram, a gente sabe. E graças à
mobilização, ano após ano, geração após geração, de mulheres cansadas de sofrer
diferentes e constantes tipos de violência, surgiram novas leis, medidas
protetivas, direitos reconhecidos. Mas ainda falta muito.
Penso
nas 28 mulheres mortas no Distrito Federal e em todas que diariamente são
silenciadas, aterrorizadas, violentadas, ainda julgadas à revelia pela roupa
que vestem, pela liberdade que ostentam. Morrem apenas porque homens se
consideram donos de seus corpos e não aceitam “não” como resposta. Morrem,
muitas vezes, um pouco a cada dia, como disse Drummond.
Contudo,
há sopros de vida e esperança pela frente. O filme e o podcast Praia dos Ossos,
que retratam o caso de Ângela, de formas diferentes, ajudam a trazer de volta o
absurdo, que nunca, jamais, pode se repetir. E nem falo do machista assassino,
porque igual a ele ainda há muitos, mas da segunda morte de Ângela e de tantas
mulheres, da impunidade.
Campanhas,
mobilizações, ativações nas redes, debates, oficinas, como os que fizemos e
ainda faremos no Correio,
ajudam a conhecer, reconhecer e promover mudanças no cenário de violência ainda
vivido pela mulher.
O contato com as gerações mais novas me dá esperanças. Atualmente, o jornal promove um curso sobre cobertura de saúde para estudantes de jornalismo. E é incrível a energia, a capacidade e a vontade dos jovens de mover estruturas sólidas em qualquer campo de atuação. O machismo ainda está longe de acabar, mas é bom saber que há um exército a caminho para continuar lutando contra ele.