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Crônica: Uma longa primavera

Uma longa primavera

Ainda era inverno, embora atípico, com aqueles dias ferventes do final da estação. Ele chegou, escolheu um galho da árvore de atemoia e soltou o trinado. O sabiá laranjeira é talvez o maior cantor da primavera, parecendo mais disposto do que os outros passarinhos, que também capricham nos gorjeios para atrair uma mocinha cheia de penas.

É um canto bonito, longo. Não é alegre; carrega uma certa melancolia nas suas notas, quase um blues. E se tudo der certo, uma passarinha cai na lábia e eles serão felizes enquanto a chama durar.

Não está fácil. Já faz alguns dias que ele canta, alternando o palco entre a atemoia e o abacateiro, o que mostra que ele vai precisar se esforçar mais ou procurar outra freguesia a procura da companheira de mais uma estação.

Os pássaros cantam o ano todo, mas é na primavera que eles esfolam a garganta e capricham no drama como um exasperado tenor interpretando o Alfredo de La Traviata. Alguns se ajeitam logo, como o casal de oleiros – joão-de-barro de joaninha – que solta seus escandalosos do alto da mangueira, enquanto escolhem o lugar para construir o ninho.

É um ritual que se repete a cada ano, porque o casal parece gostar de casa nova. São sempre dois cômodos, um para as ninhadas – quase sempre quatro – e outro para o casal; depois vão em busca de vida nova, renovando a parceria fielmente.

Algum maledicente sertanejo inventou que o joão-de-barro, quando desconfia que está sendo traído, prende a joaninha (ou sabiazinha, em algumas regiões) no ninho e fecha a porta para que ela morra lá dentro. Mentira. Passarinho não tem a atávica maldade dos humanos…

Enquanto isso, as maritacas voam em bandos, parecendo não ter lugar fixo, parando apenas para comer e fazer algazarra e a frondosa sibipiruna da esquina abriga centenas de passarinhos de várias espécies nos finais de tarde.

A notícia boa para os pequenos voadores é que os paulistas estão discutindo a proibição da venda de passarinhos nas lojas de animais domésticos, os tais pets. É o fato mais importante desde a proibição das cruéis rinhas de canários – alguns chegavam a manter as fêmeas por perto para aumentar a ferocidade dos animais – que hoje rendem cadeia.

Dias desses estive num barbeiro que mantém no recinto um canário belga que só para de cantar quando é colocado um pano por cima da gaiola. Enxerido, perguntei porque ele mantinha o passarinho preso e ele disse que, como era de cativeiro, acreditava que ele não fosse sobreviver ao mundo cruel lá de fora. Desculpa mais do que esfarrapada.

Mas acrescentou, egoísta: “além do mais eu gosto muito de ouvi-lo cantar”. Eu ia sugeri que ele comprasse um disco, que tem a vantagem de ter várias espécies, com cantos variados mas, covarde, me calei. Não se deve ser muito incisivo com quem trabalha com navalha afiada na mão.

De volta para casa, lá estava o sabiá laranjeira, livre, mas não sei se mais feliz que o canário, porque ainda cantava. Parece que a primavera vai ser longa para ele.


Paulo Pestana – Correio Braziliense 



 

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