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Uma sociedade conivente

Uma sociedade conivente. Dói, dá trabalho e amedronta enfrentar a corja branca e heteronormativa que mostra os dentes cada vez que uma bandeira feminina é elevada.

No filme Spotlight – Segredos Revelados, que narra a histórica cobertura do The Boston Globe, que trouxe à tona a pedofilia na Igreja Católica, há um diálogo entre dois personagens que conversam sobre como escândalos conhecidos por parte do governo, promotoria, polícia e mesmo da imprensa, e ainda não são revelados. A certa altura, um deles diz algo assim (embora não me recorde a frase propriamente dita): "muito mais do que imaginamos as sociedades costumam colocar grandes horrores pra baixo do tapete".

Lembrei-me desse filme espetacular ao analisar os desdobramentos de algumas notícias que foram destaques nas últimas semanas, em especial que envolvem mulheres, seja na condição de vítimas, seja na condição de militantes por uma sociedade mais igualitária. Não vou enveredar pelos fatos, pois nem é necessário, já que tentar varrer a sujeira para baixo do tapete é uma prática corriqueira, em especial quando envolve pautas femininas.

Dói, dá trabalho e amedronta enfrentar a corja branca e heteronormativa que mostra os dentes cada vez que uma bandeira feminina é elevada. Mas cada nova conquista é uma prova de que machistas não passarão. Na política, na polícia, no Judiciário, em todas as instâncias de poder e na sociedade como um todo.

Recentemente, magistradas comemoraram a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que instituiu listas alternadas (uma composta só de magistradas mulheres) para promoção de carreira no Judiciário, a fim de promover paridade de gênero.


É claro que isso não veio de graça nem foi engolido por boa parte do Judiciário, que argumenta que a paridade é questão de tempo. Que tenham paciência as mulheres. Notadamente é um argumento esdrúxulo, uma vez que o número de magistradas em instâncias superiores diminuiu nos últimos anos. O choro é livre, mas as conquistas não serão em vão. E não podem parar.


Há tentativas em curso para se omitir dados sobre feminicídios, sob o pretexto de que a divulgação aumenta o número de casos. O silêncio, no entanto, nunca promoveu revoluções que não sejam as íntimas, inerentes a cada ser humano. Expor a realidade é o primeiro passo para curar feridas sociais profundas. Machismo, racismo, violência contra os indígenas, hoje e sempre, não acabam sem gritos.


Gostemos ou não, queiramos ou não, a poeira está no ar, densa. Ela baixa e vira sujeira. Jogar para baixo do tapete nunca foi solução. Mas é a escolha cômoda de uma sociedade que costuma impor sigilo às dores das mulheres e das minorias. É no fundo a banalidade do mal, conceito cunhado pela filósofa alemã, Hannah Arendt, ao analisar o julgamento de Eichmann, nunca condenado pelos crimes do nazismo, apoiado no argumento de que apenas "cumpria ordens"


Sabe o mal tolerado, apoiado em leis e regramentos injustos? Torna-se banal e aceito por boa parte da sociedade. Contra esse status quo é preciso reagir. Em tempo, depois de muito sofrimento imposto, as minorias perseguidas e as mulheres estão levantando suas bandeiras e celebrando suas conquistas. Não sem dor, não sem ameaça, não sem ofensas. Ainda assim, crescem. E continuarão crescendo. O nosso silêncio serve à reflexão, mas não deve ser conivente para manter estruturas arcaicas e patriarcais.



Ana Dubeux – Correio Braziliense




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